Sunday, March 10, 2019

Capítulo 15: Execução em praça pública



Assim que amanhece o dia, a população marciana ganha as ruas e marcha em peso até a praça central, primeiro porque hoje é o grande dia do bicentenário da colônia, segundo, para saber o motivo de tanto barulho na noite anterior e o que aconteceu em Bethesda. Rumores de que os demônios trazidos pela Arca estavam à solta, causando morte e destruição, logo se espalham. Cadáveres de guardas, rastros de sangue, estilhaços e marcas de tiroteio, aliados à ausência dos espécimes na jaula em frente ao palácio, causam pavor na população, cuja fé no reverendo Christianson, pela primeira vez, é posta em xeque.
Encolhido no canto mais recôndito de seu cômodo, Paul escuta aquele infindável turbilhão de pensamentos como se a multidão se encontrasse ali, ao seu redor. Seus olhos mórbidos se dirigem ao trono, onde até literalmente ontem reinava soberano, cheio de energia e confiança. Sua atenção, finalmente, se volta para Dayad, adormecida depois de um dardo tranquilizante, ali a poucos metros de distância, nua e vulnerável como ele tanto queria. Mas, agora ele já não é mais o mesmo. Machucado física e moralmente, o líder marciano só consegue enxergar na terráquea a fonte de sua desgraça. Tal como dito por ela mesma quando se conheceram, era melhor que ele a matasse logo, do contrário, ele se arrependeria amargamente de ter cruzado seu caminho. Ela e Perpetua tinham razão ao chamá-lo de covarde, pois ele sozinho se sente um fraco, sempre se apoiando em algo ou alguém para exercer seu poder, a exemplo do desgastado androide Gabriel, recarregando ao lado de Dayad.
‒ Pai, por que me abandonaste? ‒ murmura o reverendo, olhando para uma imagem de Cristo crucificado, fixada na parede. ‒ Logo eu, seu filho mais capaz, justo e santo! O que fiz para merecer tamanha provação?
Paul obtém o silêncio como resposta. Não obstante, seu semblante começa a se iluminar. Com dificuldade, ele se levanta e caminha até a janela, de onde vê o povo reunido na praça central.
‒ É isso! Tudo isso é uma provação, uma chance que Deus está me dando para que eu prove a minha lealdade e mostre ao povo que sou o escolhido para guiá-lo!
O reverendo rapidamente veste seus apetrechos cerimoniais e dá voz de comando para que Gabriel apanhe a terráquea e o acompanhe até a sacada. Ao vê-lo, o povo não se curva, como de costume, mas aponta para o líder como se estivessem diante do próprio anticristo, que trouxe sua horda infernal para espalhar o caos e o terror na até então pacata e civilizada comunidade.
Valendo-se de poderosas caixas de som colocadas previamente para uma missa campal em comemoração ao bicentenário, o reverendo saúda a população:
‒ Povo de Deus! A paz esteja convosco!
Ao ouvir vaia como resposta, o forçoso sorriso de Christianson se esvai e, usando de toda a capacidade de seu leitor de pensamentos, ele invade as cabeças do público, que estremece ao ouvir um sonoro e inaudito “Silêncio!”.
‒ Hoje, como vocês sabem, é um dia histórico. O dia em que celebramos os 200 anos de fundação da nossa colônia, símbolo do amor de Deus por nós, seu povo escolhido. Como as sagradas escrituras atestam, era nossa missão reaver nossa Terra prometida e eu, como humilde guia de vocês, os conduzi até esse objetivo, não é verdade?
‒ Mas trouxe os demônios de lá para nos destruírem! ‒ grita um homem em meio à multidão.
‒ Precisávamos saber com quem estamos lidando! ‒ berra o reverendo, nunca antes confrontado durante um discurso. ‒ Deus está provando a nossa fé, testando nossa capacidade de permanecermos juntos diante do inimigo e vocês, pobres pecadores, estão mostrando a Ele que não são dignos de retomar o planeta de nossos ancestrais, nosso por direito! Se vocês não conseguem se unir e resistir contra um punhado de pobres diabos, o que dizer, então, de um planeta inteiro infestado por eles? Onde está a fé de vocês?
A plateia agora fica em silêncio.
‒ Pois eu digo a vocês ‒ eu não perdi a fé! Resisti e lutei contra os ímpios invasores, mandei sete deles de volta para o Inferno e, para que não restem dúvidas de que sou o escolhido de Deus, como consta nas escrituras, deixei a última e mais perversa das crias de Satanás para executar agora, com meus poderes divinos, aqui, diante de vocês!
Gabriel, comandado por Paul, ergue o corpo de Dayad pelos pulsos, exibindo-a para o público. Mães e pais fecham os olhos de suas crianças, diante do corpo desnudo daquela que carrega em si a culpa por todos os problemas da colônia, enquanto outros semblantes parecem divididos entre excitação e repulsa. Dayad acorda de seu sono induzido, se deparando com toda aquela massa de gente pálida e hostil. Ela tenta se libertar, mas as rígidas mãos do androide a mantém longe do solo, privando-lhe do apoio necessário para empregar sua vantagem gravitacional.
‒ Vejam como se contorce essa cria das trevas diante da luz! Contemplem o destino de todo aquele que se atrever a levantar-se contra mim! Eu sei muito bem quem de vocês duvidou da minha autoridade e, como mostra da minha benevolência, os deixarei viver, mas da próxima vez...
Enquanto o reverendo conduz seu discurso incompreensível, Dayad pouco a pouco consegue desvencilhar sua mão mais suada das garras do androide Gabriel. Calculando a distância até a arma pendurada em sua cintura, ela respira fundo e solta a mão de uma vez só, arrebatando a pistola a laser e, em seguida, efetuando um disparo certeiro na cabeça do reverendo, que cai inerte ao chão.
A plateia grita e se dispersa, apavorada, enquanto Dayad liberta sua outra mão das garras do androide, que tomba sozinho, sem mestre a quem obedecer. Eis que uma voz ecoa em seu subconsciente: “...deixei a última e mais perversa das criaturas demoníacas para executar agora, com meus poderes divinos, aqui, diante de vocês!”. Dayad então sente seus pulsos apertarem e seu corpo ser elevado por uma força invisível. Finalmente ela acorda, diante daquele público nefasto. Ela se contorce, em vão, e se depara com seu algoz ali, vivo e discursando com seu tom arrogante:
‒ Vejam como se contorce essa cria das trevas diante da luz! Contemplem...
Aquelas palavras... Sim, Dayad teve uma visão. Assim como previu, sua mão não tarda a escapulir por entre os dedos metálicos de Gabriel. Com extrema agilidade, Dayad solta a mão e arranca a arma da cintura do androide, sendo invadida por um sentimento de intensa satisfação ao disparar contra o reverendo, vingando-se assim por Ioṣū e todas as outras vítimas daquele homem cruel e sanguinário.
Para sua surpresa, entretanto, Paul desvia e imediatamente revida com uma poderosa descarga elétrica antes que ela possa disparar.
“Então você vê o futuro, não é? Pois por essa você não esperava!” ‒ exclama o reverendo, que já havia vislumbrado aquela visão enquanto Dayad dormia em seu cômodo. “Não se preocupe, você não vai morrer justo agora que descobri seu segredinho, do qual pretendo me apoderar assim que levar você ao laboratório!”
Dayad perde os sentidos. A arma cai de sua mão. A plateia vai ao delírio.
‒ Estão vendo as artimanhas do demônio?! Ardilosos, desprezíveis, mesmo com toda nossa hospitalidade e boa vontade em civilizá-los, em mostrar-lhes a palavra de Deus, agem assim, tentando nos matar na primeira oportunidade! Se eu errei, minhas crianças, foi por ser bondoso demais! Perdão por antecipar a execução dessa cria do Satanás, mas, foi melhor assim, pois vocês viram que agi em legítima defesa! Essa é a forma de Deus todo-poderoso lavar minhas mãos e assim me inocentar por tirar uma vida, ainda que abominável e esconjurada...
A outra mão de Dayad se solta devido ao peso de seu corpo que despenca inerte, para espanto do reverendo, que chega a dar um saltinho apavorado. Recompondo-se do susto, Paul coça a garganta e se prepara para continuar seu discurso, quando percebe uma nova visão brotar da mente da terráquea. Desta vez, ela se apossa da pistola a laser e dispara não contra ele, mas, contra a cruz de ferro que coroa seu palácio/templo, fazendo o disparo ricochetear e acertá-lo pelas costas. Surpreso com a audácia da terráquea desacordada, o reverendo muda de planos.
‒ Bem, como eu dizia... Deus está conosco e Ele me escolheu para executar a árdua, porém, nobre tarefa de guiar vocês na conquista da Terra prometida. Para tanto, Ele me deu poderes divinos para combater o mal, como vocês acabaram de ver com seus próprios olhos. E isto é apenas uma pequena amostra dos poderes que Deus me deu para melhor servi-Lo. ‒ exclama o reverendo, erguendo-se em pleno ar, para deslumbramento geral do povo. ‒ Algum de vocês ainda duvida de minha autoridade?!
O silêncio toma conta da multidão, cuja visão é ofuscada pelo sol que se levanta logo atrás do reverendo, tornando a cena ainda mais fantástica.
‒ Então, curvem-se diante de seu líder supremo, escolhido pelo próprio senhor Deus, rei do Universo!!!
O povo se curva veementemente diante daquele espetáculo. Pessoas choram, emocionadas e aquelas que duvidaram da santa autoridade do reverendo se arrependem dolorosamente de, mesmo que por um instante, perder a fé nEle. Um som de disparo de laser corta o êxtase da plateia, que imediatamente vira seus olhos para a sacada do imponente prédio e vê a terráquea disparando novamente, mas não contra o reverendo e sim contra a cruz da igreja.
‒ Herege! Profana! Matem-na! ‒ gritam pessoas na multidão, revoltadas ao verem tamanha blasfêmia.
Paul solta um riso de desprezo ao ver que os tiros sequer chegam perto de atingi-lo. Ele poderia usar o androide para deter a terráquea, mas, para concluir o espetáculo, resolve acabar com aquela situação patética por conta própria.
‒ Vejam como o Satanás age irracionalmente, tentando ferir o símbolo que amamos e louvamos, pois sabe que não pode nos ferir! Mas, não temam, meus filhos. Agora, de uma vez por todas, arrancarei o mal pela raiz!
O reverendo, ainda impressionado com a resistência da terráquea à eletricidade, inicia um voo rasante, com as mãos apontadas para Dayad, pronto para eletrocutá-la com o máximo da potência que seu aparelho lhe permite. Esta continua a disparar contra a cruz, ainda que a distância lhe permita mirar diretamente no reverendo. Um barulho metálico vindo de cima chama a atenção do marciano que, antes que consiga olhar, é acertado pela monumental cruz de ferro que se desprende do topo do edifício após tantos tiros certeiros em sua base. A cruz, virada de cabeça para baixo, trespassa as nádegas do reverendo assim que cai junto com ele, no chão.
A plateia grita e se dispersa, em pânico. Gabriel, descarregado, tomba sozinho, enquanto uma poça de sangue avança ao redor do corpo de Paul, ainda consciente.
“Mas você viu outra coisa...” ‒ murmura o reverendo mentalmente.
“Você viu o que eu quis lhe mostrar.” ‒ responde Dayad, se aproximando de pistola em punho. “Quando eu entendi que você era capaz de captar minhas visões, forjei uma e você acreditou. Você foi egocêntrico, só pensou em si mesmo. Eu sabia que não perceberia meu plano.”
“Por que você fala de mim no passado?”
“Porque você é passado.”
Dayad ergue o braço direito do reverendo, que não tem forças para resistir às aterradoras intenções que ele lê na mente de seu algoz. Ele grita, inutilmente, enquanto a terráquea arranca seu braço com disparos a laser que queimam sua carne, provocando-lhe uma dor indescritível.
“Não se preocupe, você não vai morrer justo agora...” ‒ sorri Dayad, voltando-se aos aposentos do líder marciano, de posse do braço dele.
‒ Nããããooo...!!! ‒ grita Paul, engasgando-se com o próprio sangue.
A porta se fecha automaticamente assim que Dayad adentra o cômodo. Ela prossegue até um sensor de mão, na parede, onde ela coloca a palma do reverendo. Um enorme painel de controle se abre, exatamente como havia na primeira vez em que foi trazida àquele quarto macabro. Sem entender ao certo o que está escrito, os olhos de Dayad se fixam sobre um mapa da colônia vista da órbita, o que ela supõe que seja o controle do canhão orbital utilizado pelo marciano para atacar seu planeta e, pouco tempo antes, a nave que levava suas companheiras. Instintivamente, a terráquea guia uma marca de alvo na tela até o centro da redoma e nota um botão vermelho logo ao lado. Ela sabe que se aquilo for o que ela acredita que seja, será o fim tanto da colônia quanto dela mesma, o que já não lhe importa, uma vez que ela sabe que não tem como escapar dali.
“Todas nós vamos morrer um dia, Dayad, é a vida.”
“Essa é por você, Ioṣū.”
Dayad respira fundo e aperta o botão. Sem perceber uma reação imediata, ela aperta o botão mais uma vez e, de repente, ouve um enorme estrondo do lado de fora. Ela corre até a janela e vê uma coluna de fogo atingir a redoma, fazendo a terra tremer. Assim que a primeira investida do Arcanjo se dissipa, outra se segue, rompendo a grossa barreira de vidro vulcânico e criando um rombo que começa a sugar tudo ao redor. A visão é aterradora, mas não mais do que o que Dayad testemunhou em seu planeta, quando as naves marcianas invadiram seu território. Pessoas, veículos, objetos, pedaços de casas, tudo é sugado para o espaço até o ar ser expurgado e dentro da redoma reinar o hegemônico vácuo exterior, para desespero de Paul, que ainda está consciente para ver tudo isso acontecer e, finalmente, morrer asfixiado. Dayad se apoia de costas na parede e deixa seu corpo deslizar até o chão. Desprovida de qualquer emoção ‒ alegria, tristeza, orgulho ou remorso ‒ a terráquea só consegue pensar em suas companheiras, na Terra e em Marte, pelas quais finalmente fez justiça. Ela sabe que seu destino é o mesmo daquela gente asfixiada, mas ela não se desespera. Sua missão está cumprida. 


Sunday, March 3, 2019

Capítulo 14: A despedida



“Pronto, isso deve estancar a hemorragia e cuidar da queimadura. Por sorte, o disparo não acertou órgãos vitais.” ‒ explica Perpetua, terminando o curativo na região lateral do abdômen de Enā’y.
“Obrigada...” ‒ murmura a terráquea.
“Agora, fique aqui. Nós vamos buscar Zioiz e Ūāṣ, tudo bem?” ‒ anuncia Dayad, segurando a mão da amiga.
O grupo deixa Enā’y em seu leito e se direciona à porta, rumo à outra ala onde deve se encontrar o casal. Antes de sair, contudo, Perpetua ouve a paciente terráquea chamá-la:
“Desculpe por ter duvidado de você...”
“Tudo bem.” ‒ sorri Perpetua, timidamente, e parte.
De porta em porta, o grupo revista todo o laboratório de Bethesda, o qual foi designado para quarentenas e experimentos com espécies alienígenas, sem expor o resto da colônia. Finalmente, resta apenas uma sala ainda não revistada, justamente aquela aonde Perpetua mais temia que tivessem levado as terráqueas.
“Não abre.” ‒ aponta Iouria, frustrado.
“Afastem-se.” ‒ pede Dayad, erguendo a pistola a laser e disparando contra a fechadura eletrônica.
Finalmente a porta revela um interior frio e escuro. Perpetua respira fundo e liga a luz, revelando duas macas ocupadas, cobertas por lençóis sintéticos manchados de sangue. O clima se torna ainda mais tenso. Dayad avança pelo cômodo, cautelosamente, e se aproxima dos corpos, levantando o tecido do primeiro e...
“O que foi, Dayad? Quem é?” ‒ pergunta Ayizur.
“Acho que era Ūāṣ.” ‒ conta Dayad, com lágrimas nos olhos.
A outra terráquea se aproxima e retira a capa, revelando um corpo masculino mutilado, desentranhado e decapitado.
Ayizur é tomada por um ímpeto de vomitar, mas não consegue. Iouria se desespera e Perpetua, a mais afastada do grupo, leva a mão ao rosto.
‒ Por que fizeram isso?! Por que tamanha maldade?! ‒ grita Ayizur, dando socos no chão, inconsolável.
Dayad respira fundo e seca as lágrimas com a mão. Ela então se encaminha até o outro corpo e, de uma vez só, retira a capa.
O horror nos olhos de Dayad é indescritível. Ayizur e Iouria se aproximam e não têm palavras para expressar sua angústia e revolta. O corpo igualmente decapitado e mutilado de Zioiz tem, ainda ligado por um cordão umbilical, um feto em formação arrancado do ventre e posto ao lado da mãe.
‒ Nós... nem sabíamos que ela estava grávida. ‒ murmura Ayizur, aos prantos.
“Eu... sinto muito.” ‒ lamenta Perpetua. “Essa era a má notícia...”
‒ Então você sabia que fizeram isso com elas?! ‒ pergunta Iouria, furioso.
“Não! Claro que não! Eu estava presa, não sabia de nada do que estava acontecendo! Mas, uma vez que vocês foram para a prisão e o casal ficou aqui, era possível de se imaginar que fosse para que fizessem experimentos com seus corpos. Saber como funcionam, se são como os nossos, guardar para a posteridade...”
Iouria olha para Dayad, como se para confirmar os fatos, ao que esta anui pesarosamente. O terráqueo, tomado de raiva, desfere um soco contra um armário de aço logo atrás de si, revelando uma espécie de gaveta que se abre e revela as cabeças congeladas do casal, juntamente com outras partes de seus corpos.
O jovem, aterrorizado pela visão macabra, começa a arrancar os próprios cabelos e caminhar erraticamente ao redor da sala. Dayad, cujas lágrimas se esgotaram, fecha a gaveta antes que Ayizur, encolhida num canto, se levante e veja, piorando ainda mais a situação. De repente, um ruído de transmissão de rádio começa a ecoar pela sala:
“Ouçam-me, demônios da Terra! Eu lhes proponho um trato: a vida de vocês pela diabinha. Se vocês me entregarem-na, deixo vocês irem de volta ao planetinha de merda de onde vieram, do contrário, mato todos vocês! Perpetua, eu sei que você está me ouvindo, então traduza a minha mensagem para o líder do grupo, agora!”
“O que foi que ele disse?” ‒ pergunta Dayad.
“Que você se renda e, em troca, ele deixará as outras partirem de volta à Terra.” ‒ conta a marciana.
Ayizur olha para Dayad e para Perpetua. Iouria continua caminhando ao redor da sala, sem reação.
‒ O que está acontecendo? ‒ pergunta Enā’y, da porta, após se esgueirar pelos corredores, ainda bastante debilitada.
Do lado de fora do laboratório ouve-se o ruidoso maçarico, acoplado ao braço de Gabriel, recortando o pesado portão metálico, última barreira entre o grupo e a escolta de Simon. Perpetua conduz o grupo até a Arca, partindo para o painel de controle assim que adentra a imensa nave espacial.
“Você consegue levá-las de volta para casa?” ‒ pergunta Dayad, aproximando-se da marciana.
“Sim, a nave tem carga suficiente para dar a partida, depois disso, contaremos com a energia do Sol... Espere. Você não vai conosco?”
“Não. Preciso me assegurar de que vocês partirão em segurança. Ademais, tenho assuntos a tratar com seu irmão.”
“Isso é suicídio, Dayad! Se você ficar, ele fará coisas terríveis com você!”
“Ao contrário. Eu que farei coisas terríveis com ele.”
A marciana não tem o que dizer diante do determinado semblante da terráquea. Ayizur, após acomodar Enā’y e Iouria, se aproxima, tensa.
“Aquela coisa está quase entrando aqui, vejam!”
As mulheres veem o portal de Bethesda prestes a desmoronar, agora sendo atacado brutalmente por Gabriel e os impacientes guardas humanos.
“Seu tempo está acabando!” ‒ anuncia a voz de Paul no rádio. “Rendam-se agora ou sofram as consequências!”
Dayad abraça Perpetua e Ayizur, que não entende nada ao ver sua amiga partir, em silêncio, para fora da nave.
“Você não está pensando em se render, está, Dayad?!” ‒ inquieta-se a terráquea, vendo-a beijar a testa de Enā’y, desacordada, e Iouria, que, ainda que esteja de olhos abertos, não reage.
“Não há nada para mim lá na Terra.”
‒ Dayad, não!!! ‒ grita Ayizur, que tenta ir atrás da companheira, mas é segurada por Perpetua.
“Sinto muito, eu também gostaria que ela ficasse, mas temos que respeitar a escolha dela.” ‒ lamenta a marciana.
Dayad deixa a nave e olha pela última vez para suas companheiras, enquanto caminha em direção ao portal. A Arca então se fecha e começa a flutuar. Quando finalmente Simon e sua escolta conseguem invadir Bethesda, se deparam com Dayad, sozinha e desarmada, e, ao fundo, a nave rompendo o topo da abóboda translúcida que protege a base espacial ‒ uma vez que não havia ninguém na sala de comando para abrir a redoma, como de costume. O vácuo do espaço exterior começa imediatamente a sugar todo o oxigênio do local, criando uma violenta corrente de ar que arrasta todas as pessoas presentes.
‒ Mestre, salve-me! ‒ grita Simon ao androide Gabriel, controlado à distância pelo reverendo, que tudo vê através das câmeras.
O androide levanta voo em meio ao caos, para contentamento do servo que o vê se aproximando. Para sua surpresa, contudo, Gabriel passa direto e captura Dayad quando esta já está prestes a ser sugada para o lado de fora ‒ destino, não obstante, encarado pelos guardas desesperados. Simon, desolado, se entrega à morte certa por asfixia na inóspita superfície nua do planeta vermelho, quando, para sua surpresa, ele consegue se prender à borda do orifício. A duras penas, lutando para não escorregar no sangue de suas próprias mãos feridas pelo vidro estilhaçado, o marciano consegue esticar o corpo e permanecer dentro da abóboda, desafiando a gravidade.
De posse de Dayad, Gabriel dá um voo rasante e deixa Bethesda para trás. Uma vez assegurada a posse de seu troféu de guerra, Paul aciona o mecanismo de fechamento de emergência da base espacial, isolando-a do resto da cidade. Simon, que se preparava para caminhar do topo da abóboda até o chão com o auxílio da gravidade invertida pelo fluxo de ar, agora se vê no vácuo, sem nada que impeça a queda de aproximadamente 30 metros de altura rumo à sua morte solitária.


 Os primeiros raios de Sol começam a surgir, iluminando a Arca, que agora ganha o horizonte. Dayad, apesar de tudo, se alegra ao ver que suas companheiras conseguiram fugir em segurança. Presa nos braços imóveis do androide, agora no chão, ela começa a suspeitar de que há algo errado. Seu plano era ser levada até o líder marciano e então se vingar dele, entre quatro paredes, mas o estranho homem de metal não se move nem a libera, como se estivesse desativado ou aguardando instruções.
Eis que a escuridão do céu marciano é cortada por uma estranha e, ao mesmo tempo, familiar coluna de fogo que acerta a Arca, para desespero de Dayad, que vê a nave desabar de volta à superfície marciana. Por mais que ela se contorça, é impossível se desvencilhar das firmes garras do androide, mas o pior é saber que não há nada que ela possa fazer para salvar suas amigas. Neste momento, Gabriel é reativado e novamente alça voo, rumo à sinistra cruz de ferro que domina o horizonte.
“Está vendo o que você fez? Você os matou! Foi você, com sua teimosia que só não é maior por falta de espaço. Você destruiu Bethesda e a Arca. Você matou Simon, Perpetua e os outros. Agora, você vai pagar por tudo isso!” ‒ anuncia Paul pelo rádio acoplado a Gabriel, mesmo sabendo que a prisioneira não entende sua língua.
Desolada, Dayad não se importa. Ela não se importa mais com nada.

Índice

Dedicatória / Aviso Capítulo 1: Sono eterno     Capítulo 2: O banquete     Capítulo 3: Um povo sem nome     Capítulo 4: Pr...