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Dois
anos depois.
‒ Uma
coluna de fumaça! Feras de metal! Fogo, colunas de fogo! A terra em chamas,
gente em chamas! ‒ grita a matriarca olhando para os céus e depois para a
terra, desesperada.
Enā’y
afaga os cabelos da mãe, tentando acalmá-la. A anciã aos poucos volta a si, à
medida que os efeitos da infusão passam. Ela então reconhece o rosto da filha e
chora. Em seguida, ela olha para as demais pessoas presentes e chora ainda
mais. Finalmente, ela se levanta e anuncia em tom fúnebre:
‒
Despeçam-se de seus entes queridos. O povo morto voltará para reclamar este
território e, não importa o que façamos, o quanto treinemos e quanto
resistamos: dessa vez não haverá escapatória.
Os
olhares de estranhamento do público agora são tomados de surpresa. Não seria
exagero da anciã? Pela primeira vez na história uma matriarca afirma que sua
visão é inevitável, que não se pode fazer nada para impedir a tragédia
iminente.
‒ Não
podemos nem fugir para outros ōā’nū? ‒ pergunta um kadnīṣak.
Mãe
Akonū, trêmula e angustiada, responde:
‒
Amanhã vocês verão.
O
público, ainda mais intrigado do que antes, assiste à matriarca se retirar, sem
poder fazer mais perguntas.
No
dia seguinte, as técnicas da estação de rádio e telecomunicações do local
correm para a casa do povo, onde vive Mãe Akonū. A notícia logo se espalha:
matriarcas de todos os ōā’nū do mundo tiveram a mesma aterrorizante visão. Um
clima de medo e tensão toma conta do vilarejo e logo a população, especialmente
quem já tinha lutado contra os invasores marcianos antes, trata de se reunir
com Enā’y, para discutir o que se pode fazer.
‒ Eu
sei que nossa mãe disse que dessa vez não há escapatória. Não só ela. Pela
primeira vez na história, várias matriarcas por todo o mundo tiveram a mesma
visão. Não importa o que elas viram, eu acredito nelas. E acredito também que
não vou me entregar aos invasores sem luta. Se é para morrermos, vamos levar
quantos deles pudermos!
Cada
uma das pessoas presentes, dispostas em círculo, deita a cabeça no ombro da
mais próxima, mostrando assim que confiam suas vidas uma na outra. Elas então
prosseguem ao campo de treinamento nas ruínas manauaras, lançando mão de todo
armamento que encontram.
...
O
movimentado mercado principal da vila segue como de costume, atraindo pessoas
de assentamentos vizinhos e com elas as mais diversas frutas, legumes, caças,
artesanatos e utensílios, tudo acompanhado por performances artísticas e
animados ritmos musicais tocados ao ar livre. Nada disso, entretanto, chama
mais a atenção do que um risco no céu, estreito e longínquo. Um clima de medo e
tensão logo toma conta do povo. As pessoas deixam as mercadorias de lado e
correm para suas casas. Em instantes, o grande terreiro se esvazia. Da antiga
Manaus, o grupo de caça[1]
identifica a coluna fumegante e logo se apressa em chegar até o local.
“Dessa
vez vieram rápido demais! Nem se passou uma lua desde a visão de Mãe Akonū.” ‒
comenta Dayad, a bordo de uma das embarcações que leva o grupo para o outro
lado do rio.
‒ É,
e me parece que pousaram mais longe, dessa vez. ‒ concorda Ṣōd.
‒
Gostaria de dizer que aconteça o que acontecer, é uma honra estar com vocês. ‒
diz Nadua, com olhos lacrimejantes, mas semblante austero.
O
grupo se entreolha. Palavras não são necessárias. Ioṣū segura firme a mão de
Dayad. Uma chuva fina não tarda em cair, logo em seguida. O grupo aporta no
vilarejo, onde se reúne com mais voluntárias, que carregam os armamentos mais
pesados para carroças a cavalo, e se apressam para seguir o percurso em terra. Antes
de partir, Dayad olha para a casa do povo, nunca antes tão deserta quanto
agora. Ela adentra a imensa cabana, onde se encontra Mãe Akonū, rodeada de
crianças cujas mães e pais foram lutar. A matriarca sorri tristemente ao ver a
jovem e gesticula para que esta se aproxime.
‒
Minha netinha... Ainda lembro como se fosse ontem da noite terrível em que você
ganhou essas marcas... ‒ diz a anciã, acariciando o braço esquerdo de Dayad,
coberto de rosas de relâmpago, referindo-se às marcas na pele de uma pessoa
atingida por um raio. ‒ Perdoe-me, você não as teria hoje se eu não tivesse
usado as ervas que usei para aliviar sua dor...
“Tudo
bem. Eu gosto delas.” ‒ sorri Dayad.
‒
Você perdeu a voz naquela noite, mas ganhou a vida. E uma linda companheira. A
relação de vocês é tão bonita de se ver... Às vezes me faz lembrar do meu
falecido companheiro...
Mãe
Akonū desata a chorar no ombro de Dayad, que por mais que tente, não sabe como
consolar a anciã.
‒ É
inútil, mas, pelo que estou vendo, necessário que vocês lutem, não é mesmo?
Então vá, minha pequena. Se você sobreviveu até mesmo a um raio, você pode
sobreviver a qualquer coisa. Proteja suas companheiras, mostre às invasoras do
que somos capazes!
Dayad
beija as mãos da matriarca e parte para a saída da cabana. Contudo, quando já
ia colocar os pés do lado de fora, uma dor pungente acossa seu braço. A jovem
passa a mão no local e encontra uma diminuta seta da qual goteja um líquido
escuro e viscoso. Perplexa, ela se volta, tentando identificar quem disparou,
quando vê uma zarabatana na mão de sua avó.
‒ Vai
dar tudo certo... ‒ anima a matriarca, cujos lábios continuam a se mover, mas
as palavras já não lhe alcançam.
As
pupilas da jovem se dilatam imediatamente e, por mais que se esforce, ela não
consegue ouvir as palavras da avó. Seu corpo, tomado por uma dor lancinante,
cai como se pesasse uma tonelada. Dayad entra em convulsão, resistindo
inutilmente à substância que invade sua corrente sanguínea, até perder os
sentidos.
...
‒
Como Vossa Santidade pode ver, todos os módulos aterrissaram num raio de até 50
quilômetros de seus respectivos destinos, conforme planejado. Os colonos
chegaram bem e já começaram a enviar informações sobre os locais.
‒ Los
Angeles, Luxemburgo, Jerusalém, Pequim, Sydney, Kinshasa, Manaus... Nenhum
desses nomes faz sentido algum para mim. Que mundo enigmático esse dos nossos
ancestrais, não é mesmo, Stephen?
‒
Bem, tratam-se de localizações estratégicas para repovo...
“Silêncio!”
O
comandante sua frio, esforçando-se para nem sequer pensar.
Christianson
se aproxima de Stephen e caminha lentamente ao seu redor, fitando-o de cima abaixo,
quando, aí mesmo, estanca.
‒
Hah, que patético! Você, um homem desse tamanho, se urinando nas calças! Você
quase me faz rir, Stephen... É por isso que eu deixo você viver.
‒
Obrigado... Vossa Santidade.
‒
Quero atenção máxima ali em... Bem, eu ainda vou achar nomes mais adequados
para substituir esses topônimos bárbaros, exceto por Jerusalém, é claro. ‒ diz
o reverendo, apontando para a região de Manaus no mapa. ‒ É ali que se encontra
o maior foco de resistência terráquea. Foi lá que nossos homens foram
brutalmente assassinados por esses demônios e é para lá que vocês devem direcionar
o Arcanjo. Ande, está esperando o quê?!
‒
S... Sim, Vossa Santidade. ‒ gagueja o comandante, curvando-se e retirando-se
logo em seguida.
‒ Ah,
mais uma coisa!
‒
Sim? ‒ volta-se Stephen, que já estava prestes a sair da sala do reverendo.
‒ Não
matem todos. Quero alguns demônios vivos, principalmente mulheres. Para
experimentos, é claro.
‒
Perfeitamente, Vossa Santidade. ‒ anui o comandante, retirando-se.
O
reverendo se volta ao telão onde está um enorme mapa-múndi, cercado de janelas
com imagens das colônias e dados enviados em tempo real, isto é, com atraso de
cerca de três minutos-luz. Ele então toca um ponto da parede e um compartimento
se abre, revelando uma barreira de vidro que o isola de uma cela de interior
acolchoado, onde se encontra uma mulher lânguida e subnutrida, sob efeito de
tranquilizantes.
‒
Veja, Perpetua, cada um dos sete pontos no mapa indica um casal, assim como eu
e você, destinado a procriar e repovoar a Terra, bem do jeito que nossos avôs
sonhavam. Não é lindo isso? Uma geração de Adãos e Evas...
Perpetua
malmente vira o rosto na direção da tela e logo volta a olhar para a parede,
sem dizer nada.
‒ Eu
sei que você não gosta dessa ideia de Adão e Eva, tampouco dos desígnios dos
nossos ancestrais, mas por que você não gosta de mim? Eu salvei sua vida! Você
bem sabe qual é o destino para aquele que se recusa a acreditar nas escrituras,
pior ainda para a mulher que desobedece às ordens de um homem ou então a mulher
que... Você sabe. Vai me dizer que você preferiria a morte a essa cela tão
confortável que eu lhe dei de presente?!
Perpetua
debilmente anui com a cabeça.
‒
Pois saiba que eu te mataria num instante, se dependesse só de mim! ‒ vocifera
Christianson. ‒ Mas antes disso você tem que me dar um filho, ouviu bem?! Um
filho varão, saudável! Não aqueles protótipos prematuros ou com deficiências,
nem meninas inúteis, como você pariu antes! Quer acabar com seu sofrimento? Dê
a luz a um herdeiro saudável, macho, de sangue puro, capaz de liderar a
humanidade nas próximas gerações! Depois disso, aí sim, eu mandarei você para o
Inferno com prazer!
Nesse
momento, um sinal de alerta vermelho surge no telão. O reverendo se aproxima e
nota as imagens de aproximações terráqueas ao redor da colônia amazônica,
seguidas de movimentações nas demais colônias pelo mundo.
‒
Como Deus é maravilhoso! Ele está me dando uma dádiva que eu julgava privilégio
exclusivo dos meus antepassados mais longínquos: ver selvagens infiéis sendo
trucidados por nossa tecnologia infinitamente superior. O mais belo da
colonização é que sua meta final consiste em criar pessoas de bem, civilizadas,
que celebrarão atrocidades como esta em banquetes de família e recontarão esta
história de geração para geração através de metáforas pueris e floreios épicos por
séculos e mais séculos! É uma pena que você se recusa a ver este espetáculo,
Perpetua... Será muito divertido!
[1] Uma vez que esse povo não tinha inimigos, seu idioma é livre de
termos militares. As recrutas que têm alguma experiência com armas de fogo são
caçadoras e o treinamento tem como objetivo empreender uma verdadeira caçada
aos invasores marcianos.
Christianson no pedaço. Quer dizer que a poha é séria mesmo! E urubu malandro que é, quer que separem umas mulheres pra ele. Terrível é o projeto dele em repovoar a Terra com seus descendentes.
ReplyDeleteFico imaginando como ficou Marte e se sobrou alguém por lá.
Grandes emoções pela frente!
Por enquanto Marte é uma pujante colônia que deseja virar metrópole...
ReplyDeleteSe eles se matarem na Terra...
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