Monday, December 17, 2018

Capítulo 4: Presságio

Tempo médio de leitura: 10 minutos.

‒ E depois disso, o que aconteceu?
‒ Nossa matriarca chegou ao lugar onde o grande rio se encontra com o gigantesco mar de água salgada. A partir daí, a expedição se dividiu em dois rumos: uma para o Norte e outra para o Sul[1], a fim de saber o que mais havia por aquelas bandas. Assim se formaram os ōā’nū de Ayzan e Ziaur, respectivamente, de onde partiram mais expedições a atravessar o grande mar e chegar às terras além do horizonte, onde se formaram os ōā’nū de Āūk, Ak’an, Akadur, Urunay, Zanṣ, Dūz, Enun’, Ulonen e Anizṣ.
As crianças ouvem o relato da professora num misto de espanto e admiração, enquanto esta desenha na areia as longínquas rotas que seu povo tomou ao se expandir pelo mundo.
‒ Mas, se estamos aqui nesse pontinho tão pequenino, como sabemos onde e como estão esses ōā’nū? ‒ pergunta uma criança.
‒ De lá para cá já se passaram quase duzentos anos. ‒ sorri a professora. ‒ Nossas antepassadas decifraram muitas coisas deixadas pelos povos mortos. A escrita, por exemplo, nos possibilitou ler seus ensinamentos sobre o rádio e meios de transporte, como automóveis e navios a energia solar, os quais nos possibilitam estar sempre em contato com as demais comunidades, além de escrevermos nós mesmas a nossa história e passarmos nosso conhecimento de geração em geração. É claro que esses avanços tecnológicos são guiados de perto pela visão das matriarcas, a fim de não repetir a sina desses infelizes povos.
‒ O que aconteceu com eles? ‒ pergunta outra criança.
‒ Não sabemos exatamente. Ao que parece, todos morreram de uma hora para a outra. Eu tenho para mim que eles cavaram a própria cova, sabem? Segundo eles, um povo inteligente, ou como chamavam, “civilizado”, era aquele que destruía a própria casa!
‒ Hahaha! ‒ riem as crianças.
‒ Pois é! Para eles, ser inteligente significava derrubar árvores, sujar rios, terra, o ar e os mares, envenenar a própria comida, maltratar e matar seus semelhantes, caçar animais até não restar nenhum deles, e por aí vai... 
‒ Meu pai me disse que a seca que fez com que Mãe Akonū saísse das nossas antigas terras foi por causa dessas coisas. ‒ relata uma criança mais velha.
‒ É bem provável. De lá para cá é difícil acreditar que já houve tamanha seca. Parece-me que o motivo dessa recuperação tão rápida foi justamente a morte desses povos tão inteligentes e tão estúpidos ao mesmo tempo. ‒ reflete a professora. ‒ Por isso, crianças, é fundamental que vocês aprendam história. Para não repetirmos os erros do passado, ainda que não nossos. Lembrem-se de que o passado está embaixo de nós, logo, ele nos sustenta. Se não o conhecemos e nos esforçamos para melhorarmos, não iremos longe.
As crianças concordam inclinando a cabeça na diagonal. Em seguida, seus olhares convergem para um ponto próximo à professora, cujo olhar também se volta:
‒ Dayad! Sorrateira como sempre! ‒ sorri a jovem, surpresa. ‒ Bom, crianças, por hoje é só, estão dispensadas.
‒ Até mais, professora Ioṣū! ‒ despedem-se as crianças em coro, levantando-se do círculo, ávidas para voltar às suas casas e contar às suas kadnīṣiaū sobre o que aprenderam na aula de hoje.
‒ Como foi sua manhã? ‒ pergunta Ioṣū, beijando a companheira.
“Bem, e a sua?” ‒ gesticula Dayad.
‒ Eu estava nervosa, a princípio, mas logo passou. ‒ sorri Ioṣū. ‒ Dar aulas não é tão ruim quanto eu pensava. Sempre gostei de escutar histórias, mas não tinha certeza se eu realmente saberia transmiti-las.  
“Está pensando em se dedicar somente a isso agora?” ‒ pergunta Dayad.
‒ Não... Acredito que posso conciliar o ensino com a engenharia. Ainda tenho vários projetos em mente. Hoje mesmo tive uma ideia que pode ajudar a agilizar a construção da ponte. ‒ responde Ioṣū, apontando para a incipiente construção que deverá ligar a vila à ilha fluvial vizinha, onde está concentrada a maior parte das plantações de arroz da comunidade. ‒ E os barcos, você já consertou?
“Quase.” ‒ responde Dayad. “Já reparei os cascos, agora só dependo de algumas peças que estão para chegar de Ziaur por esses dias. Ainda tive tempo de ajudar as meninas na pesca e ganhei um zandā como recompensa. Você está com fome?”
‒ Claro! Você sabe que esse é meu peixe favorito, nem preciso estar com fome para querê-lo! ‒ anui Ioṣū, radiante.
O casal segue conversando animadamente em direção à sua residência ‒ uma belíssima cabana de formato cônico e dois pavimentos, cercada por uma varanda coberta pelo telhado de palha do edifício, sustentado por uma série de troncos de coqueiro entalhados com motivos da fauna e flora locais, tudo isso incrustado nas rochas próximas a uma cachoeira. O caminho é colorido, cheio de flores e decorações de palha e penas de aves pelas casas e ao redor das tochas que logo mais serão acesas.
‒ Com essa preparação para as aulas eu quase havia me esquecido que hoje é aniversário de Mãe Akonū! ‒ observa Ioṣū.
“É bom nos pintarmos. Depois do anoitecer, vamos nos reunir ao redor da fogueira. Ela vai tomar a infusão.” ‒ recorda Dayad.
Depois do almoço, as duas tomam um bom banho de cachoeira e retornam para casa, onde uma pinta a outra com tinturas extraídas de frutos, desenhando símbolos tradicionais relacionados a fartura, saúde e bem-aventurança ‒ os votos mais típicos feitos antes da cerimônia da visão ‒ aliados às suas mais belas joias e acessórios. Cai a noite e o casal retorna para o centro do povoado, agora pontilhado de tochas acesas quase que inutilizadas pelo intenso brilho da lua cheia. O terreiro central agora está repleto de música e apresentações artísticas ao redor de um farto banquete em homenagem à grande matriarca. Dayad e Ioṣū reencontram parentes e amigas de povoados vizinhos, que chegam especialmente para parabenizar a aniversariante, a qual não tarda a aparecer diante do público.
‒ Minhas filhas... ‒ sorri a anciã, descendo a rampa da entrada de sua majestosa morada, a casa do povo. ‒ É um prazer enorme ver esta festa tão bonita, de ser motivo de alegria para vocês. Não foi fácil herdar o lugar de minha mãe e guiar nosso povo ao longo de tantos anos, mas, se fomos bem sucedidas, isso se deu graças ao empenho e a dedicação de vocês, que não desistiram, não temeram, não hesitaram em seguir a visão. Esta festa é, primeiramente, de vocês! Zāehak!
‒ Zāehak! ‒ brada o público, em coro, algo como “que a distância suavemente venha até nós”, saudação comumente utilizada em cerimônias ou encontros de ōā’nū.
Como de costume, a matriarca se senta diante da fogueira e as convidadas lhe trazem presentes. Depois disso, dá-se início ao banquete, em que cada pessoa serve a outra, num gesto de amor e solidariedade. Findo o banquete, as crianças pequenas são levadas para casa e as outras pessoas se sentam ao redor da fogueira, em silêncio, ao redor da grande matriarca.



Mãe Akonū derrama um pouco da infusão no pequeno copo de cerâmica adornado para este fim e, como de costume, o toca com sua testa recitando palavras inaudíveis. Em seguida, ela bebe seu conteúdo, de uma vez. Ela abaixa a cabeça e começa a tremer, mais do que o de costume. Os rostos sorridentes e relaxados que a cercavam agora começam a mostrar incerteza e preocupação, à medida que a matriarca treme e seus punhos se fecham na areia ao seu redor. De repente, ela ergue o rosto, com os olhos fechados, como se farejasse algo, e então abre os olhos para o céu, como se vislumbrasse algo invisível para as outras pessoas. Lentamente ela levanta seu braço esquerdo em direção às estrelas, soltando a areia que estava presa em suas mãos ao desdobrar seu indicador.
‒ Eu vejo uma coluna de fogo e fumaça descendo dos céus! ‒ exclama a anciã, estupefata.
O público apreensivo custa a entender aquelas palavras.
‒ Seria uma estrela cadente? Um meteoro? ‒ indaga um kadnīṣak.
‒ Não... É gente! ‒ refuta a matriarca, com os olhos arregalados. ‒ Descendentes dos povos mortos virão reivindicar estas terras!
A notícia é recebida com grande estranhamento.
‒ Então nem todos morreram? Onde esse povo se escondeu, então? ‒ pergunta Ioṣū, tentando não parecer incrédula.
‒ Em nenhum lugar aqui na Terra! ‒ explica a anciã. ‒ Essas pessoas são muito perigosas, elas não virão aqui para fazer amizade.
‒ O que podemos fazer? ‒ preocupa-se uma kadnīṣak.
‒ Peguem tudo o que vocês puderem usar como arma. Enā’y, você sabe onde guardamos as armas mortas. ‒ dirige-se Mãe Akonū a sua filha mais velha. ‒ Guie um grupo de voluntárias e treine-as.
‒ Nós já caçamos com armas de fogo antes. ‒ levantam-se Ioṣū e Dayad. ‒ Nós nos voluntariamos.
No dia seguinte, Enā’y guia um grupo de voluntárias, pouco mais de cinquenta mulheres e homens, até as ruínas de Manaus, onde adentram os escombros de um quartel militar.  Com um pesado molho de chaves, ela destrava o portão que dá acesso ao antigo arsenal, repleto dos mais variados tipos de armamento.
‒ Esses não são bem os paus de fogo que vocês usam para caçar ou espantar onças. ‒ alerta Enā’y. ‒ Essas armas podem fazer um enorme estrago. Por isso mesmo, a minha tataravó ordenou que elas ficassem aqui, trancadas, para serem utilizadas somente em caso de extrema urgência. Para ser sincera, nem sei se elas ainda funcionam, por isso, tenham muito cuidado. 
O grupo avança pelo bunker, empoeirado, porém sem sinais de infiltrações apesar da mata que toma conta da superfície e cujas raízes algum dia ainda hão de penetrar sua grossa camada de concreto.
‒ Imaginem o tamanho das feras que rondavam estas terras na época em que esse povo era vivo! ‒ comenta Ioṣū, observando uma robusta arma ao lado de suas gigantescas balas.
‒ Acreditem ou não, tudo isso que vocês estão vendo foi criado por seres humanos contra seres humanos. ‒ explica Enā’y. ‒ Isso aí, por exemplo, era usado para derrubar aviões.
‒ Que horrível! ‒ exclama a jovem, afastando-se da bateria antiaérea.
‒ Mas isso não é nada. As maiores armas mesmo nem sequer caberiam nesta sala. Há relatos de que em Ak’an encontraram armas do tamanho de sumaúmas, capazes de destruir o mundo inteiro! Assim eram esses ferozes povos e assim certamente hão de ser seus descendentes que se aproximam.
O grupo escuta perplexo ao relato, compreendendo a gravidade da situação. Enā’y, por fim, apanha um fuzil AR-15 e rapidamente analisa suas condições de uso.
‒ Vamos começar o treinamento por este aqui. Acompanhem-me.


[1] NT: Os mapas encontrados por esse povo, alheio às referências cartográficas de quem os desenhou, são utilizados com o sul apontado para cima, de modo que a expedição do sul seguiu rumo ao antigo Caribe e a do norte em direção à antiga Patagônia. Mesmo depois de desvendada a escrita, a prática continuou.

3 comments:

  1. um enfrentamento se avizinha após um grande período de desenvolvimento e criação de uma humanidade 'melhor' na terra.
    e como se desenvolveram os 'marcianos', após a destruição aqui e o extermínio racial seletivo que fizeram em Marte?
    que tipo de sociedade e pessoas criou o Reverendo Christianson?
    um confronto de pessoas totalmente opostas... vamos aguardar! Rubem

    ReplyDelete
  2. "Assim eram esses ferozes povos e assim certamente hão de ser seus descendentes que se aproximam."
    ....
    Suspiros...

    ReplyDelete
  3. Interessante a abordagem a partir de uma perspectiva neoindígena.

    ReplyDelete

Índice

Dedicatória / Aviso Capítulo 1: Sono eterno     Capítulo 2: O banquete     Capítulo 3: Um povo sem nome     Capítulo 4: Pr...