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‒ E depois disso, o que aconteceu?
‒ Nossa matriarca chegou ao lugar onde
o grande rio se encontra com o gigantesco mar de água salgada. A partir daí, a
expedição se dividiu em dois rumos: uma para o Norte e outra para o Sul[1],
a fim de saber o que mais havia por aquelas bandas. Assim se formaram os ōā’nū
de Ayzan e Ziaur, respectivamente, de onde partiram mais expedições a
atravessar o grande mar e chegar às terras além do horizonte, onde se formaram
os ōā’nū de Āūk, Ak’an, Akadur,
Urunay, Zanṣ, Dūz, Enun’, Ulonen e Anizṣ.
As crianças ouvem o relato da
professora num misto de espanto e admiração, enquanto esta desenha na areia as
longínquas rotas que seu povo tomou ao se expandir pelo mundo.
‒ Mas, se estamos aqui nesse pontinho
tão pequenino, como sabemos onde e como estão esses ōā’nū? ‒ pergunta uma
criança.
‒ De lá para cá já se passaram quase
duzentos anos. ‒ sorri a professora. ‒ Nossas antepassadas decifraram muitas
coisas deixadas pelos povos mortos. A escrita, por exemplo, nos possibilitou
ler seus ensinamentos sobre o rádio e meios de transporte, como automóveis e
navios a energia solar, os quais nos possibilitam estar sempre em contato com
as demais comunidades, além de escrevermos nós mesmas a nossa história e
passarmos nosso conhecimento de geração em geração. É claro que esses avanços
tecnológicos são guiados de perto pela visão das matriarcas, a fim de não
repetir a sina desses infelizes povos.
‒ O que aconteceu com eles? ‒ pergunta
outra criança.
‒ Não sabemos exatamente. Ao que
parece, todos morreram de uma hora para a outra. Eu tenho para mim que eles
cavaram a própria cova, sabem? Segundo eles, um povo inteligente, ou como
chamavam, “civilizado”, era aquele que destruía a própria casa!
‒ Hahaha! ‒ riem as crianças.
‒ Pois é! Para eles, ser inteligente significava
derrubar árvores, sujar rios, terra, o ar e os mares, envenenar a própria
comida, maltratar e matar seus semelhantes, caçar animais até não restar nenhum
deles, e por aí vai...
‒ Meu pai me disse que a seca que fez
com que Mãe Akonū saísse das nossas antigas terras foi por causa dessas coisas.
‒ relata uma criança mais velha.
‒ É bem provável. De lá para cá é
difícil acreditar que já houve tamanha seca. Parece-me que o motivo dessa
recuperação tão rápida foi justamente a morte desses povos tão inteligentes e
tão estúpidos ao mesmo tempo. ‒ reflete a professora. ‒ Por isso, crianças, é
fundamental que vocês aprendam história. Para não repetirmos os erros do
passado, ainda que não nossos. Lembrem-se de que o passado está embaixo de nós,
logo, ele nos sustenta. Se não o conhecemos e nos esforçamos para melhorarmos,
não iremos longe.
As crianças concordam inclinando a
cabeça na diagonal. Em seguida, seus olhares convergem para um ponto próximo à
professora, cujo olhar também se volta:
‒ Dayad! Sorrateira como sempre! ‒
sorri a jovem, surpresa. ‒ Bom, crianças, por hoje é só, estão dispensadas.
‒ Até mais, professora Ioṣū! ‒
despedem-se as crianças em coro, levantando-se do círculo, ávidas para voltar
às suas casas e contar às suas kadnīṣiaū sobre o que aprenderam na aula de
hoje.
‒ Como foi sua manhã? ‒ pergunta Ioṣū,
beijando a companheira.
“Bem, e a sua?” ‒ gesticula Dayad.
‒ Eu estava nervosa, a princípio, mas
logo passou. ‒ sorri Ioṣū. ‒ Dar aulas não é tão ruim quanto eu pensava. Sempre
gostei de escutar histórias, mas não tinha certeza se eu realmente saberia transmiti-las.
“Está pensando em se dedicar somente a
isso agora?” ‒ pergunta Dayad.
‒ Não... Acredito que posso conciliar
o ensino com a engenharia. Ainda tenho vários projetos em mente. Hoje mesmo
tive uma ideia que pode ajudar a agilizar a construção da ponte. ‒ responde Ioṣū,
apontando para a incipiente construção que deverá ligar a vila à ilha fluvial
vizinha, onde está concentrada a maior parte das plantações de arroz da comunidade.
‒ E os barcos, você já consertou?
“Quase.” ‒ responde Dayad. “Já reparei
os cascos, agora só dependo de algumas peças que estão para chegar de Ziaur por
esses dias. Ainda tive tempo de ajudar as meninas na pesca e ganhei um zandā
como recompensa. Você está com fome?”
‒ Claro! Você sabe que esse é meu
peixe favorito, nem preciso estar com fome para querê-lo! ‒ anui Ioṣū,
radiante.
O casal segue conversando animadamente
em direção à sua residência ‒ uma belíssima cabana de formato cônico e dois pavimentos,
cercada por uma varanda coberta pelo telhado de palha do edifício, sustentado
por uma série de troncos de coqueiro entalhados com motivos da fauna e flora
locais, tudo isso incrustado nas rochas próximas a uma cachoeira. O caminho é
colorido, cheio de flores e decorações de palha e penas de aves pelas casas e
ao redor das tochas que logo mais serão acesas.
‒ Com essa preparação para as aulas eu
quase havia me esquecido que hoje é aniversário de Mãe Akonū! ‒ observa Ioṣū.
“É bom nos pintarmos. Depois do
anoitecer, vamos nos reunir ao redor da fogueira. Ela vai tomar a infusão.” ‒
recorda Dayad.
Depois do almoço, as duas tomam um bom
banho de cachoeira e retornam para casa, onde uma pinta a outra com tinturas
extraídas de frutos, desenhando símbolos tradicionais relacionados a fartura,
saúde e bem-aventurança ‒ os votos mais típicos feitos antes da cerimônia da
visão ‒ aliados às suas mais belas joias e acessórios. Cai a noite e o casal
retorna para o centro do povoado, agora pontilhado de tochas acesas quase que
inutilizadas pelo intenso brilho da lua cheia. O terreiro central agora está
repleto de música e apresentações artísticas ao redor de um farto banquete em
homenagem à grande matriarca. Dayad e Ioṣū reencontram parentes e amigas de
povoados vizinhos, que chegam especialmente para parabenizar a aniversariante,
a qual não tarda a aparecer diante do público.
‒ Minhas filhas... ‒ sorri a anciã,
descendo a rampa da entrada de sua majestosa morada, a casa do povo. ‒ É um
prazer enorme ver esta festa tão bonita, de ser motivo de alegria para vocês.
Não foi fácil herdar o lugar de minha mãe e guiar nosso povo ao longo de tantos
anos, mas, se fomos bem sucedidas, isso se deu graças ao empenho e a dedicação
de vocês, que não desistiram, não temeram, não hesitaram em seguir a visão. Esta
festa é, primeiramente, de vocês! Zāehak!
‒ Zāehak! ‒ brada o público, em coro,
algo como “que a distância suavemente venha até nós”, saudação comumente
utilizada em cerimônias ou encontros de ōā’nū.
Como de costume, a matriarca se senta
diante da fogueira e as convidadas lhe trazem presentes. Depois disso, dá-se
início ao banquete, em que cada pessoa serve a outra, num gesto de amor e
solidariedade. Findo o banquete, as crianças pequenas são levadas para casa e
as outras pessoas se sentam ao redor da fogueira, em silêncio, ao redor da
grande matriarca.
Mãe Akonū derrama um pouco da infusão
no pequeno copo de cerâmica adornado para este fim e, como de costume, o toca
com sua testa recitando palavras inaudíveis. Em seguida, ela bebe seu conteúdo,
de uma vez. Ela abaixa a cabeça e começa a tremer, mais do que o de costume. Os
rostos sorridentes e relaxados que a cercavam agora começam a mostrar incerteza
e preocupação, à medida que a matriarca treme e seus punhos se fecham na areia
ao seu redor. De repente, ela ergue o rosto, com os olhos fechados, como se
farejasse algo, e então abre os olhos para o céu, como se vislumbrasse algo
invisível para as outras pessoas. Lentamente ela levanta seu braço esquerdo em
direção às estrelas, soltando a areia que estava presa em suas mãos ao desdobrar
seu indicador.
‒ Eu vejo uma coluna de fogo e fumaça
descendo dos céus! ‒ exclama a anciã, estupefata.
O público apreensivo custa a entender
aquelas palavras.
‒ Seria uma estrela cadente? Um
meteoro? ‒ indaga um kadnīṣak.
‒ Não... É gente! ‒ refuta a
matriarca, com os olhos arregalados. ‒ Descendentes dos povos mortos virão reivindicar estas terras!
A notícia é recebida com grande
estranhamento.
‒ Então nem todos morreram? Onde esse
povo se escondeu, então? ‒ pergunta Ioṣū, tentando não parecer incrédula.
‒ Em nenhum lugar aqui na Terra! ‒
explica a anciã. ‒ Essas pessoas são muito perigosas, elas não virão aqui para
fazer amizade.
‒ O que podemos fazer? ‒ preocupa-se
uma kadnīṣak.
‒ Peguem tudo o que vocês puderem usar
como arma. Enā’y, você sabe onde guardamos as armas mortas. ‒ dirige-se Mãe
Akonū a sua filha mais velha. ‒ Guie um grupo de voluntárias e treine-as.
‒ Nós já caçamos com armas de fogo antes.
‒ levantam-se Ioṣū e Dayad. ‒ Nós nos voluntariamos.
No dia seguinte, Enā’y guia um grupo
de voluntárias, pouco mais de cinquenta mulheres e homens, até as ruínas de
Manaus, onde adentram os escombros de um quartel militar. Com um pesado molho de chaves, ela destrava o
portão que dá acesso ao antigo arsenal, repleto dos mais variados tipos de
armamento.
‒ Esses não são bem os paus de fogo que
vocês usam para caçar ou espantar onças. ‒ alerta Enā’y. ‒ Essas armas podem
fazer um enorme estrago. Por isso mesmo, a minha tataravó ordenou que elas
ficassem aqui, trancadas, para serem utilizadas somente em caso de extrema
urgência. Para ser sincera, nem sei se elas ainda funcionam, por isso, tenham
muito cuidado.
O grupo avança pelo bunker,
empoeirado, porém sem sinais de infiltrações apesar da mata que toma conta da
superfície e cujas raízes algum dia ainda hão de penetrar sua grossa camada de
concreto.
‒ Imaginem o tamanho das feras que
rondavam estas terras na época em que esse povo era vivo! ‒ comenta Ioṣū,
observando uma robusta arma ao lado de suas gigantescas balas.
‒ Acreditem ou não, tudo isso que
vocês estão vendo foi criado por seres humanos contra seres humanos. ‒ explica
Enā’y. ‒ Isso aí, por exemplo, era usado para derrubar aviões.
‒ Que horrível! ‒ exclama a jovem,
afastando-se da bateria antiaérea.
‒ Mas isso não é nada. As maiores
armas mesmo nem sequer caberiam nesta sala. Há relatos de que em Ak’an
encontraram armas do tamanho de sumaúmas, capazes de destruir o mundo inteiro!
Assim eram esses ferozes povos e assim certamente hão de ser seus descendentes
que se aproximam.
O grupo escuta perplexo ao relato,
compreendendo a gravidade da situação. Enā’y, por fim, apanha um fuzil AR-15 e
rapidamente analisa suas condições de uso.
‒ Vamos começar o treinamento por este
aqui. Acompanhem-me.
[1] NT: Os mapas encontrados por esse povo, alheio às referências
cartográficas de quem os desenhou, são utilizados com o sul apontado para cima,
de modo que a expedição do sul seguiu rumo ao antigo Caribe e a do norte em
direção à antiga Patagônia. Mesmo depois de desvendada a escrita, a prática
continuou.
um enfrentamento se avizinha após um grande período de desenvolvimento e criação de uma humanidade 'melhor' na terra.
ReplyDeletee como se desenvolveram os 'marcianos', após a destruição aqui e o extermínio racial seletivo que fizeram em Marte?
que tipo de sociedade e pessoas criou o Reverendo Christianson?
um confronto de pessoas totalmente opostas... vamos aguardar! Rubem
"Assim eram esses ferozes povos e assim certamente hão de ser seus descendentes que se aproximam."
ReplyDelete....
Suspiros...
Interessante a abordagem a partir de uma perspectiva neoindígena.
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