Três anos depois, nas
profundezas da selva outrora conhecida como amazônica, ou no que restou dela...
‒ Seca. Eu vejo seca.
Um suspiro toma conta
das pessoas ali presentes, ao redor de uma anciã. Kadnīṣiaū [1],
em prantos, seguram suas raquíticas crianças.
‒ E não há nada que
possamos fazer? ‒ pergunta uma kadnīṣak.
‒ Fugir.
‒ Como? Para onde?
Tudo ao redor está seco, os rios estão secos, a caça desapareceu, nada cresce
aonde quer que vamos...
‒ Esperem.
O cômodo se silencia.
A anciã toma mais um gole de uma bebida escura e espessa de um copo de
cerâmica. De olhos fechados, ela balança levemente o corpo para frente e para
trás, sentada, gentilmente girando a cabeça num movimento espontâneo.
A ansiedade só cresce.
As próximas palavras da matriarca decidirão o futuro daquele povo sofrido.
Pouca gente consegue suportar tamanha dose e sobreviver para contar o que viu,
ainda mais com tanta calma. Entretanto, o semblante enrugado e os dedos
trêmulos da anciã mostram que não está sendo nada fácil. De repente, ela
arregala os olhos, como se quisesse tocar o que vislumbrou, e grita:
‒ Quatro patas! Água...
Muita água! E mais terra, e mais água, tudo será nosso! Seremos muitas[2]! Achem o animal grande de quatro patas!
Tudo será nosso!...
A pequena plateia
estremece ao ouvir aquela palavra tão esperada: “água.” Onde? Quando? Seria o
fim da seca? E o que significam essas “quatro patas”? E essa terra, esse “tudo”
que será “nosso”?
O transe se
intensifica e a anciã entra em convulsão, balbuciando palavras ininteligíveis.
Suas filhas a socorrem e ela desmaia logo em seguida.
‒ Vamos, deixem Mãe
Akonū descansar. ‒ pede uma de suas filhas, visivelmente abalada. ‒ Amanhã
vocês poderão fazer mais perguntas, quando ela se restabelecer.
As pessoas pouco a
pouco se dispersam em retorno às suas casas. Um kadnīṣak murmura a seu
companheiro:
‒ Parece que dessa vez
não tem saída. Se ela antes via o que não víamos, agora ela vê a mesma seca que
nós vemos.
‒ É, mas ela viu água
e quatro patas, o que acho que se refere a caça. Água e comida. Há esperança!
‒ Se ela teve que
tomar outro gole para ver isso, significa que ainda está longe. Morreremos
muito antes.
‒ Calma, amor. A
matriarca está fraca, há pouca erva, mas eu confio nela. Ela e as outras sempre
nos guiaram, livrando-nos do perigo, mesmo que isso signifique colocar suas
vidas em risco.
...
Os primeiros raios de
sol do dia seguinte revelam prantos. Em frente à residência da matriarca, uma
cabana que cobre a entrada de uma gruta que encerra em si a última fonte de
água do povoado, pessoas choram ao ouvir a triste notícia.
‒ Ela sabia dos riscos
de tomar tamanha dose. ‒ explica uma das filhas da matriarca. ‒ Não obstante,
ela o fez, pois, sabia que a nossa distância[3] dependia
de sua visão. Eu sei que vocês têm muitas perguntas, para as quais nós não
temos resposta, mas, antes de partir, ela nos disse que tenhamos esperança.
‒ Esperança é a única
coisa que temos. ‒ lamenta um kadnīṣak.
‒ Agora só nos resta
achar esse grande quadrúpede. ‒ conclui outra kadnīṣak. ‒ Meus instintos me
dizem que com ele acharemos água e um novo lar.
Uma pequena expedição
é formada em busca do misterioso animal. O grupo, formado pelas pessoas em
melhores condições físicas, esquadrinha a outrora densa, imperscrutável mata,
agora seca e sem vida. Nem mesmo sob a folhagem que cai das árvores mais
frondosas se encontram mais cobras, uma das últimas fontes de alimento do
povoado. Alimentando-se de insetos e bebendo da parca seiva das árvores, as
esperanças de retornar ao povoado vão se esvaindo com o passar dos dias.
Exaurido, após um dia de dura caminhada pelas traiçoeiras e íngremes matas, o
grupo decide montar acampamento para passar a noite.
‒ Quando eu era
pequena, minha mãe me contava umas histórias de quando nossas ancestrais muito,
muito antigas, viviam num lugar onde havia água a se perder de vista. ‒ conta a
filha mais velha da anciã, cujos olhos lacrimejantes fulguram, refletindo as
chamas da fogueira.
‒ Eu também ouvi
falar, mas diziam que dessa água não se podia beber. ‒ comenta um kadnīṣak. ‒
Você acha que era a essa água que ela se referiu na última visão?
‒ Talvez...
‒ E o que aconteceu
com elas, porque se mudaram de lá? ‒ pergunta uma filha.
‒ Nem sempre vivemos
em paz. ‒ suspira a mãe. ‒ Lá, na terra da água salgada, a erva da visão não
existia e ninguém sabia o que iria acontecer. Assim, as pessoas inventavam
seres imaginários para explicar o mundo, os quais utilizavam como justificativa
para atacarem umas as outras... Um povo tentava tomar a terra do outro,
famílias lutavam entre si, vidas se perdiam em vão... Se nossas ancestrais não
tivessem vindo para cá e encontrado a erva, provavelmente não existiríamos
hoje.
‒ Então a matriarca
quer que voltemos lá, para o perigo? ‒ inquieta-se um filho.
‒ Muita coisa pode ter
mudado, não sei. ‒ responde a mãe, pensativa. ‒ Eu sei que aqui mudou e não
temos outra escolha a não ser mudarmos também.
‒ Com a erva da visão,
mesmo que voltemos à terra da água salgada, tudo será diferente. Mas, primeiro,
precisamos achar esse bicho grande de quatro patas. Não pode ser anta, nem onça,
senão a matriarca teria dito. O que pode ser então?
‒ Não sei, mas, assim
como nós, ele deve precisar de água. Se acharmos água, acharemos a fera.
Enquanto isso, no povoado, as esperanças
são cada vez menores.
‒ Ao menos Mãe Akonū
pôde ser sepultada por sua família... Pobre de suas crianças que se perderam
nas matas ou morreram de sede e de fome...! ‒ lamenta uma kadnīṣak, debilitada
demais para se juntar à expedição.
‒ Calma, irmã, de nada
adianta você chorar. Se morreram, morreram como gente brava, que não desiste.
Se sobreviveram, hão de voltar com boas notícias. ‒ consola uma outra.
De repente, as duas
ouvem as crianças gritando, numa súbita algazarra. Elas saem da cabana da
antiga matriarca e se deparam com suas filhas e filhos que há tanto tempo
haviam partido, agora, sobre enormes animais quadrúpedes, tais como nunca antes
vistos por aquelas bandas.
‒ Vocês voltaram! ‒
surpreendem-se as mães, agora chorando de felicidade. ‒ Então são esses os
quadrúpedes de que Mãe Akonū falou?
‒ Só pode. ‒ sorri a
filha mais velha. ‒ Desculpem a demora, voltamos o mais rápido que pudemos.
Agora temos como e para onde ir.
Todo o povoado se
junta para conhecer os curiosos animais profetizados pela matriarca. As cerca
de quarenta pessoas se arrumam, ao longo de dois dias, e se despedem, ao longo
de duas noites, do lugar que elas e suas antepassadas por tempos imemoriais
chamaram de lar. Com tudo o que precisa cuidadosamente preso ao dorso dos
mansos equinos, a caravana parte em busca de melhores paragens.
Sob liderança de Izāen, filha primogênita de Mãe Akonū, após longos
e árduos dias de caminhada o grupo chega ao local onde a pequena manada de
cavalos havia sido encontrada, um lamaçal que restou de um dos tributários do outrora caudaloso rio conhecido
em outras línguas como Tapauá, com algumas teimosas poças d’água espalhadas a
esmo, o suficiente para causar imensa alegria naqueles rostos tão abatidos. Contudo,
à distância, outra coisa atrai os olhares mais atentos: uma enorme figura
abstrata, de cores contrastantes, desponta ao longo do que era, muito tempo
atrás, a beira do rio. Izāen parte para
ver do que se trata, sendo seguida de perto por três kadnīṣiaū em seus cavalos. À medida
em que o quarteto se aproxima, o cenário se torna ainda mais misterioso.
‒ Parece morto... ‒ constata Izāen, diminuindo a cautela à medida em que se aproxima da draga
abandonada. ‒ Para dizer a verdade, não sei se essa coisa já esteve viva antes.
‒ Vejam, ela parece
uma imensa tartaruga. Imaginem como seria nadar pelos rios no dorso de um bicho
desse tamanho! ‒ exclama um kadnīṣak.
‒ É mesmo... ‒
concorda Izāen, intrigada com o achado. ‒ Bem, já está
anoitecendo, temos que levantar acampamento e fazer uma fogueira. Amanhã
voltaremos aqui com mais calma.
A noite cai, mas as
trevas que ali reinavam absolutas ao longo das incontáveis noites livres de
presença humana por ali voltavam a serem atingidas pela luz crepitante da
grande fogueira ao redor da qual se reúne o povo.
‒ Então era a isso
que Mãe Akonū se referia, quando falou que encontraríamos “muita água”? ‒
indaga um ancião, pensativo.
‒ Acredito que não.
‒ responde Izāen. ‒ Hoje, mais do que nunca, vejo que isto é apenas
o começo do mundo vislumbrado por minha mãe. Vi coisas inexplicáveis, mas muito
interessantes, e me parece que ainda encontraremos muitos outros mistérios.
‒ Guie-nos, Mãe Akonū. ‒ pede uma kadnīṣak, deitando
sua testa no ombro de Izāen, gesto considerado
nesta comunidade como símbolo de confiança incondicional. ‒ Nós acreditamos em
você. Só você poderá nos guiar, só você é capaz de controlar o poder da erva.
‒ Eu? ‒
surpreende-se Izāen. ‒ Mas eu não sou a mais velha aqui, nem a que tem
mais crianças.
‒ Você já nos
lidera. Sem sua força de vontade não teríamos conseguido chegar até aqui.
Ademais, o sangue de sua mãe circula em suas veias... ‒ ajunta-se seu
companheiro.
‒ Bem, se é
assim... ‒ levanta-se Izāen, decidida. ‒ Então
minha primeira ordem é que descansem. Não foi fácil chegarmos até aqui,
precisamos nos restabelecer se quisermos seguir adiante. Enquanto isso, farei
os preparativos para o ritual da infusão, na próxima lua cheia. Só então
poderei dizer aonde iremos.
Assim é feito.
Dentro de algumas noites o povo novamente se reúne, desta vez, dentro da cabana
principal, feita para reuniões, onde também reside a mãe dos ōā’nū. No centro se encontra Izāen, com um copo de cerâmica em mãos, contendo a infusão
da erva, pela primeira vez fora de seu lugar de origem. Em silêncio, ela
encosta a testa na borda e sibila algo inaudível, tomando um gole logo em
seguida. A tensão aumenta, à medida que ela permanece em silêncio, lentamente
balançando o corpo para frente e para trás. “Seria uma pessoa tão jovem capaz
de suportar os efeitos da infusão?” pensam as mais velhas. Subitamente, Izāen começa a tremer e
suar frio. O balançar de seu corpo, inicialmente gentil, agora mais parece a
convulsão que antecipou a morte de sua mãe. Seu companheiro se aproxima e tenta
acalmá-la. Ela, por sua vez, se levanta de súbito e aponta para frente, ao
mesmo tempo em que regurgita e cai de volta ao chão, sempre com o dedo
indicador firme, na direção do rio.
No dia seguinte, um grupo parte na direção apontada por Izāen. À medida
em que avançam, as águas começam a ganhar volume, como se se aproximassem do
coração de uma entidade moribunda, que ainda insiste em pulsar. À distância há
embarcações de vários tamanhos, algumas, leves, ainda em condições de navegar
pelo curso das parcas águas que resistem à seca.
Ao longo de sucessivos rituais, Izāen aprende a controlar suas visões e a orientar seu povo até encontrar
um mundo de água doce e misteriosas construções abandonadas pelo caminho, as
mais grandiosas das quais se concentram não muito longe do encontro de um rio
de águas negras e outro de água barrenta. O laborioso e intrépido povo de
Izāen, sob sua tutela, não tarda a começar a desvendar os segredos daquela
misteriosa terra que mais parece um imenso cemitério, devido ao vasto número de
esqueletos por todas as partes.
“Se não vejo o que
está embaixo, é porque só a distância importa” ‒ pensa a líder, que não se
satisfaz até encontrar a terra da água salgada da qual suas antepassadas
falavam. Usando sua visão de futuro, ela consegue antecipar a descoberta do
funcionamento das grandes embarcações achadas no rio. A bordo de uma delas, ela
lidera novas expedições, rumo à foz.
[1] NT: Título referente tanto a mães quanto a pais, aqui, num
sentido mais amplo, denomina representantes dos ōā’nū, algo como “famílias.”
Compostas de dez pessoas cada, essas famílias não necessariamente compartilham
laços consanguíneos, mas devem cuidar do bem-estar umas das outras.
[2] NT: Embora os substantivos e adjetivos dessa língua não carreguem
noção de gênero, os determinantes ‒ partículas que selecionam categorias
diversas ‒ podem expressar, se necessário, o gênero de seres sexuados. Não
obstante, o determinante plural misto é sempre o feminino.
[3] NT: Do termo ākiaīṣ, algo como “distância.” Neste contexto, se
refere ao que chamamos de “futuro.” Na língua deste povo cujo nome, após mais
de mil anos sem contato com nenhum outro, se tornou irrelevante, tempo é medido
em espaço: do mais distante, isto é, futuro, para o mais próximo, ūkiō ‒ “embaixo de nós” ‒ isto é, passado.
Excelente, criativo, dinâmico, bem fluido. Boa crítica.
ReplyDeleteObrigado! Domingo devo postar o próximo capítulo :)
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