Sunday, December 9, 2018

Capítulo 3: Um povo sem nome





Três anos depois, nas profundezas da selva outrora conhecida como amazônica, ou no que restou dela...
‒ Seca. Eu vejo seca.
Um suspiro toma conta das pessoas ali presentes, ao redor de uma anciã. Kadnīṣiaū [1], em prantos, seguram suas raquíticas crianças.
‒ E não há nada que possamos fazer? ‒ pergunta uma kadnīṣak.
‒ Fugir.
‒ Como? Para onde? Tudo ao redor está seco, os rios estão secos, a caça desapareceu, nada cresce aonde quer que vamos...
‒ Esperem.
O cômodo se silencia. A anciã toma mais um gole de uma bebida escura e espessa de um copo de cerâmica. De olhos fechados, ela balança levemente o corpo para frente e para trás, sentada, gentilmente girando a cabeça num movimento espontâneo.
A ansiedade só cresce. As próximas palavras da matriarca decidirão o futuro daquele povo sofrido. Pouca gente consegue suportar tamanha dose e sobreviver para contar o que viu, ainda mais com tanta calma. Entretanto, o semblante enrugado e os dedos trêmulos da anciã mostram que não está sendo nada fácil. De repente, ela arregala os olhos, como se quisesse tocar o que vislumbrou, e grita:
‒ Quatro patas! Água... Muita água! E mais terra, e mais água, tudo será nosso! Seremos muitas[2]! Achem o animal grande de quatro patas! Tudo será nosso!...
A pequena plateia estremece ao ouvir aquela palavra tão esperada: “água.” Onde? Quando? Seria o fim da seca? E o que significam essas “quatro patas”? E essa terra, esse “tudo” que será “nosso”?
O transe se intensifica e a anciã entra em convulsão, balbuciando palavras ininteligíveis. Suas filhas a socorrem e ela desmaia logo em seguida.
‒ Vamos, deixem Mãe Akonū descansar. ‒ pede uma de suas filhas, visivelmente abalada. ‒ Amanhã vocês poderão fazer mais perguntas, quando ela se restabelecer.
As pessoas pouco a pouco se dispersam em retorno às suas casas. Um kadnīṣak murmura a seu companheiro:
‒ Parece que dessa vez não tem saída. Se ela antes via o que não víamos, agora ela vê a mesma seca que nós vemos.
‒ É, mas ela viu água e quatro patas, o que acho que se refere a caça. Água e comida. Há esperança!
‒ Se ela teve que tomar outro gole para ver isso, significa que ainda está longe. Morreremos muito antes.
‒ Calma, amor. A matriarca está fraca, há pouca erva, mas eu confio nela. Ela e as outras sempre nos guiaram, livrando-nos do perigo, mesmo que isso signifique colocar suas vidas em risco.

...

Os primeiros raios de sol do dia seguinte revelam prantos. Em frente à residência da matriarca, uma cabana que cobre a entrada de uma gruta que encerra em si a última fonte de água do povoado, pessoas choram ao ouvir a triste notícia.
‒ Ela sabia dos riscos de tomar tamanha dose. ‒ explica uma das filhas da matriarca. ‒ Não obstante, ela o fez, pois, sabia que a nossa distância[3] dependia de sua visão. Eu sei que vocês têm muitas perguntas, para as quais nós não temos resposta, mas, antes de partir, ela nos disse que tenhamos esperança.
‒ Esperança é a única coisa que temos. ‒ lamenta um kadnīṣak.  
‒ Agora só nos resta achar esse grande quadrúpede. ‒ conclui outra kadnīṣak. ‒ Meus instintos me dizem que com ele acharemos água e um novo lar.
Uma pequena expedição é formada em busca do misterioso animal. O grupo, formado pelas pessoas em melhores condições físicas, esquadrinha a outrora densa, imperscrutável mata, agora seca e sem vida. Nem mesmo sob a folhagem que cai das árvores mais frondosas se encontram mais cobras, uma das últimas fontes de alimento do povoado. Alimentando-se de insetos e bebendo da parca seiva das árvores, as esperanças de retornar ao povoado vão se esvaindo com o passar dos dias. Exaurido, após um dia de dura caminhada pelas traiçoeiras e íngremes matas, o grupo decide montar acampamento para passar a noite.
‒ Quando eu era pequena, minha mãe me contava umas histórias de quando nossas ancestrais muito, muito antigas, viviam num lugar onde havia água a se perder de vista. ‒ conta a filha mais velha da anciã, cujos olhos lacrimejantes fulguram, refletindo as chamas da fogueira.
‒ Eu também ouvi falar, mas diziam que dessa água não se podia beber. ‒ comenta um kadnīṣak. ‒ Você acha que era a essa água que ela se referiu na última visão?
‒ Talvez...
‒ E o que aconteceu com elas, porque se mudaram de lá? ‒ pergunta uma filha.
‒ Nem sempre vivemos em paz. ‒ suspira a mãe. ‒ Lá, na terra da água salgada, a erva da visão não existia e ninguém sabia o que iria acontecer. Assim, as pessoas inventavam seres imaginários para explicar o mundo, os quais utilizavam como justificativa para atacarem umas as outras... Um povo tentava tomar a terra do outro, famílias lutavam entre si, vidas se perdiam em vão... Se nossas ancestrais não tivessem vindo para cá e encontrado a erva, provavelmente não existiríamos hoje.
‒ Então a matriarca quer que voltemos lá, para o perigo? ‒ inquieta-se um filho.
‒ Muita coisa pode ter mudado, não sei. ‒ responde a mãe, pensativa. ‒ Eu sei que aqui mudou e não temos outra escolha a não ser mudarmos também.
‒ Com a erva da visão, mesmo que voltemos à terra da água salgada, tudo será diferente. Mas, primeiro, precisamos achar esse bicho grande de quatro patas. Não pode ser anta, nem onça, senão a matriarca teria dito. O que pode ser então?
‒ Não sei, mas, assim como nós, ele deve precisar de água. Se acharmos água, acharemos a fera.




Enquanto isso, no povoado, as esperanças são cada vez menores.
‒ Ao menos Mãe Akonū pôde ser sepultada por sua família... Pobre de suas crianças que se perderam nas matas ou morreram de sede e de fome...! ‒ lamenta uma kadnīṣak, debilitada demais para se juntar à expedição.
‒ Calma, irmã, de nada adianta você chorar. Se morreram, morreram como gente brava, que não desiste. Se sobreviveram, hão de voltar com boas notícias. ‒ consola uma outra.
De repente, as duas ouvem as crianças gritando, numa súbita algazarra. Elas saem da cabana da antiga matriarca e se deparam com suas filhas e filhos que há tanto tempo haviam partido, agora, sobre enormes animais quadrúpedes, tais como nunca antes vistos por aquelas bandas.
‒ Vocês voltaram! ‒ surpreendem-se as mães, agora chorando de felicidade. ‒ Então são esses os quadrúpedes de que Mãe Akonū falou?
‒ Só pode. ‒ sorri a filha mais velha. ‒ Desculpem a demora, voltamos o mais rápido que pudemos. Agora temos como e para onde ir.
Todo o povoado se junta para conhecer os curiosos animais profetizados pela matriarca. As cerca de quarenta pessoas se arrumam, ao longo de dois dias, e se despedem, ao longo de duas noites, do lugar que elas e suas antepassadas por tempos imemoriais chamaram de lar. Com tudo o que precisa cuidadosamente preso ao dorso dos mansos equinos, a caravana parte em busca de melhores paragens.
Sob liderança de Izāen, filha primogênita de Mãe Akonū, após longos e árduos dias de caminhada o grupo chega ao local onde a pequena manada de cavalos havia sido encontrada, um lamaçal que restou de um dos tributários do outrora caudaloso rio conhecido em outras línguas como Tapauá, com algumas teimosas poças d’água espalhadas a esmo, o suficiente para causar imensa alegria naqueles rostos tão abatidos. Contudo, à distância, outra coisa atrai os olhares mais atentos: uma enorme figura abstrata, de cores contrastantes, desponta ao longo do que era, muito tempo atrás, a beira do rio. Izāen parte para ver do que se trata, sendo seguida de perto por três kadnīṣiaū em seus cavalos. À medida em que o quarteto se aproxima, o cenário se torna ainda mais misterioso.
‒ Parece morto... ‒ constata Izāen, diminuindo a cautela à medida em que se aproxima da draga abandonada. ‒ Para dizer a verdade, não sei se essa coisa já esteve viva antes.
‒ Vejam, ela parece uma imensa tartaruga. Imaginem como seria nadar pelos rios no dorso de um bicho desse tamanho! ‒ exclama um kadnīṣak.
‒ É mesmo... ‒ concorda Izāen, intrigada com o achado. ‒ Bem, já está anoitecendo, temos que levantar acampamento e fazer uma fogueira. Amanhã voltaremos aqui com mais calma.
A noite cai, mas as trevas que ali reinavam absolutas ao longo das incontáveis noites livres de presença humana por ali voltavam a serem atingidas pela luz crepitante da grande fogueira ao redor da qual se reúne o povo.
‒ Então era a isso que Mãe Akonū se referia, quando falou que encontraríamos “muita água”? ‒ indaga um ancião, pensativo.
‒ Acredito que não. ‒ responde Izāen. ‒ Hoje, mais do que nunca, vejo que isto é apenas o começo do mundo vislumbrado por minha mãe. Vi coisas inexplicáveis, mas muito interessantes, e me parece que ainda encontraremos muitos outros mistérios.
‒ Guie-nos, Mãe Akonū. ‒ pede uma kadnīṣak, deitando sua testa no ombro de Izāen, gesto considerado nesta comunidade como símbolo de confiança incondicional. ‒ Nós acreditamos em você. Só você poderá nos guiar, só você é capaz de controlar o poder da erva.
‒ Eu? ‒ surpreende-se Izāen. ‒ Mas eu não sou a mais velha aqui, nem a que tem mais crianças.
‒ Você já nos lidera. Sem sua força de vontade não teríamos conseguido chegar até aqui. Ademais, o sangue de sua mãe circula em suas veias... ‒ ajunta-se seu companheiro.
‒ Bem, se é assim... ‒ levanta-se Izāen, decidida. ‒ Então minha primeira ordem é que descansem. Não foi fácil chegarmos até aqui, precisamos nos restabelecer se quisermos seguir adiante. Enquanto isso, farei os preparativos para o ritual da infusão, na próxima lua cheia. Só então poderei dizer aonde iremos.
Assim é feito. Dentro de algumas noites o povo novamente se reúne, desta vez, dentro da cabana principal, feita para reuniões, onde também reside a mãe dos ōā’nū. No centro se encontra Izāen, com um copo de cerâmica em mãos, contendo a infusão da erva, pela primeira vez fora de seu lugar de origem. Em silêncio, ela encosta a testa na borda e sibila algo inaudível, tomando um gole logo em seguida. A tensão aumenta, à medida que ela permanece em silêncio, lentamente balançando o corpo para frente e para trás. “Seria uma pessoa tão jovem capaz de suportar os efeitos da infusão?” pensam as mais velhas. Subitamente, Izāen começa a tremer e suar frio. O balançar de seu corpo, inicialmente gentil, agora mais parece a convulsão que antecipou a morte de sua mãe. Seu companheiro se aproxima e tenta acalmá-la. Ela, por sua vez, se levanta de súbito e aponta para frente, ao mesmo tempo em que regurgita e cai de volta ao chão, sempre com o dedo indicador firme, na direção do rio.
No dia seguinte, um grupo parte na direção apontada por Izāen. À medida em que avançam, as águas começam a ganhar volume, como se se aproximassem do coração de uma entidade moribunda, que ainda insiste em pulsar. À distância há embarcações de vários tamanhos, algumas, leves, ainda em condições de navegar pelo curso das parcas águas que resistem à seca.
Ao longo de sucessivos rituais, Izāen aprende a controlar suas visões e a orientar seu povo até encontrar um mundo de água doce e misteriosas construções abandonadas pelo caminho, as mais grandiosas das quais se concentram não muito longe do encontro de um rio de águas negras e outro de água barrenta. O laborioso e intrépido povo de Izāen, sob sua tutela, não tarda a começar a desvendar os segredos daquela misteriosa terra que mais parece um imenso cemitério, devido ao vasto número de esqueletos por todas as partes.
“Se não vejo o que está embaixo, é porque só a distância importa” ‒ pensa a líder, que não se satisfaz até encontrar a terra da água salgada da qual suas antepassadas falavam. Usando sua visão de futuro, ela consegue antecipar a descoberta do funcionamento das grandes embarcações achadas no rio. A bordo de uma delas, ela lidera novas expedições, rumo à foz.


[1] NT: Título referente tanto a mães quanto a pais, aqui, num sentido mais amplo, denomina representantes dos ōā’nū, algo como “famílias.” Compostas de dez pessoas cada, essas famílias não necessariamente compartilham laços consanguíneos, mas devem cuidar do bem-estar umas das outras.
[2] NT: Embora os substantivos e adjetivos dessa língua não carreguem noção de gênero, os determinantes ‒ partículas que selecionam categorias diversas ‒ podem expressar, se necessário, o gênero de seres sexuados. Não obstante, o determinante plural misto é sempre o feminino.
[3] NT: Do termo ākiaīṣ, algo como “distância.” Neste contexto, se refere ao que chamamos de “futuro.” Na língua deste povo cujo nome, após mais de mil anos sem contato com nenhum outro, se tornou irrelevante, tempo é medido em espaço: do mais distante, isto é, futuro, para o mais próximo, ūkiō ‒ “embaixo de nós” ‒ isto é, passado.

3 comments:

  1. Excelente, criativo, dinâmico, bem fluido. Boa crítica.

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    1. Obrigado! Domingo devo postar o próximo capítulo :)

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