Sunday, December 2, 2018

Capítulo 2: O banquete

Tempo médio de leitura: 10 minutos

‒ Thomas! Quanto tempo! Como foi a viagem? ‒ sorri um homem de meia idade, falando com um ligeiro sotaque austríaco.
‒ Nada mal, dormimos feito bebês, ainda bem que não para sempre! ‒ responde o irreverente primeiro-ministro britânico.
‒ General Ackermann. ‒ estende-lhe a mão seu colega estadunidense. ‒ É um prazer revê-lo. Como andam os preparativos para o procedimento de limpeza?
‒ Já está tudo pronto, só esperávamos a chegada de vocês. ‒ assegura o austríaco. ‒ Tratei de convocar todos os elementos à sala de conferência assim que o módulo de vocês foi acoplado, contudo, para evitar vazamento de informações, só alguns parceiros-chave têm ciência do procedimento.
‒ Você teme que eles não cooperem?
‒ Não, não é isso, é que... existem alguns relacionamentos interraciais aqui na colônia, além de amizades entre astronautas de diferentes etnias. É claro que eu nunca me pronunciei contra isso, ao menos não publicamente. Isso era até útil para o trabalho em equipe, só que hoje poderia ser um obstáculo. Mas, não se preocupem, já está tudo arranjado, eles não são muitos por aqui mesmo. Já devem estar todos na sala.
‒ Certifique-se disso. ‒ ordena Christianson.
‒ Perfeitamente. ‒ aquiesce Ackermann. ‒ Daremos início ao procedimento dentro de instantes. Acompanhem-me, assistiremos tudo através das câmeras!
‒ Eu passo. ‒ avisa o primeiro-ministro. ‒ Tenho o estômago fraco para essas coisas e não estou a fim de vomitar o delicioso sunday roast que comi antes de decolar. Sabe-se lá quando poderei comer outro daqueles!
A tripulação segue o general anfitrião até sua sala de comando, onde encontram mais aliados que observam em tempo real o interior da sala de conferência através de telões.

...

‒ Você não acha que eles estão demorando um pouco?
‒ Demorando? Ao contrário, eu acho que eles estão vindo é rápido demais. Considerando que desde que misteriosamente perdemos contato com a Terra não temos notícias de lá, é de se imaginar que a tripulação recém-chegada passasse por um longo interrogatório. Não é isso que estou vendo.
‒ Na certa essas pessoas têm patentes muito altas, até o próprio Ackermann foi lá recebê-las.
‒ E vocês já repararam como não tem nenhum branco nesta sala? Cadê o resto do mundo?
‒ É mesmo... Só tem gente negra, asiática e latina por aqui!
‒ Não é verdade. ‒ objeta-se um astronauta argentino. ‒ Eu sou branco, aqueles russos ali no canto da sala também.
‒ Que parte de “gente latina” você não entendeu? ‒ desdenha a astronauta nigeriana. ‒ A Argentina fica onde, nos Alpes suíços agora?
‒ É, e os russos também não são bem brancos, tipo, europeus. ‒ comenta um astronauta japonês.
Понаехали... ‒ comenta um dos russos, irritado.
‒ Parece que vocês chineses, com essa fobia de pegar sol, são os mais brancos nessa sala, quem diria! ‒ debocha um brasileiro, chamando a atenção do introspectivo grupo de taikonautas.
‒ Gente, brincadeiras a parte, não era para estar todo mundo aqui? Da NASA só temos Nguyen, Morales, Saeed, Levi e eu, que sou negra. ‒ aponta para si uma astronauta norte-americana. ‒ Da agência europeia também só tem descendentes de imigrantes de fora da Europa e vocês do sul e do leste, não é mesmo?
O grupo de astronautas da Itália, Espanha, Bulgária, Romênia e Polônia anui, preocupado.
‒ Era de se suspeitar quando um colega meu alemão se propôs a me substituir hoje à tarde. Ele nunca tinha sido tão amigável comigo. ‒ constata um astronauta italiano.
Nesse momento, os olhares se voltam para a porta, única via de acesso à sala de conferência. Passos ressoam de alguém se aproximando... A porta é aberta e...
‒ Perdi alguma coisa? ‒ indaga o astronauta português, fechando a porta logo em seguida.
‒ Não!!! ‒ gritam em coro os astronautas, em pânico.
Antes que o recém-chegado pudesse dizer algo, um ruído de fechamento da trava é escutado, seguido de outro mecanismo interno, desconhecido.

...

‒ Acabo de receber confirmação de que todos os elementos se encontram em posição. Senhoras e senhores, daremos início agora ao procedimento de limpeza! Regozijem-se! ‒ anuncia o general Ackermann com um sorriso perverso: ‒ Drei... Zwei... Eins...
O general austríaco aperta o botão de confirmação da sequência de retirada de oxigênio do recinto, um procedimento de emergência originalmente pensado para remanejamento em caso de crise. O general Christianson e sua comitiva assistem com um prazer quase obsceno àquelas pobres pessoas se contorcendo desesperadamente, asfixiadas, apavoradas, tentando inutilmente fugir do seu repentino leito de morte. Pouco a pouco os espasmos vão perdendo força, até que o último corpo arrefece.
Fatality. ‒ comenta o general norte-americano. ‒ Avisem aos demais sobre o “acidente” e organizem um funeral para as vítimas. Eu mesmo farei as honras.

...

A trágica notícia é recebida com muita dor e revolta pelo restante da população, alheio às verdadeiras circunstâncias. Questionamentos surgem por toda parte, a respeito da improvável falha mecânica na pressurização da sala de conferências, bem como o fato de só haverem pessoas de países periféricos dentre as vítimas, com exceções de cunho evidentemente racista. E isso logo após a chegada do déspota que havia transformado os EUA numa ditadura militar abertamente xenófoba, e de sua sombria e inesperada comitiva.
‒ Meus filhos. É com imenso pesar que eu me encontro aqui, diante de vocês, neste momento que deveria ser de alegria por chegarmos sãos e salvos ao Planeta Vermelho, mas que tornou-se o dia mais cinzento e trágico da história desta colônia...
‒ Corte esse papo furado e diga logo o que aconteceu de verdade! ‒ grita um dos astronautas, viúvo de uma das vítimas, com os olhos vermelhos de lágrimas e fúria. ‒ Assassino! Desgraçado!
O homem parte em direção ao general para agredi-lo, ao que os guardas do militar sacam suas armas.
‒ O quê? Esse lunático trouxe armas de fogo para cá?! ‒ pasma o astronauta. ‒ Isso viola todas as nossas regras de segurança! General Ackermann, o senhor não vai fazer nada para impedir isso?
Os olhos azuis petrificantes do austríaco fitam o astronauta, dizendo tudo e nada ao mesmo tempo. Outras vozes se juntam à do colega e demandam respostas:
‒ Queremos a verdade! Isso não pode ter sido acidente! O que está acontecendo por aqui?!
Christianson respira fundo, fecha os olhos e diz:
‒ Aquele que habita no esconderijo do Altíssimo, à sombra do Onipotente descansará. Direi do Senhor: Ele é o meu Deus, o meu refúgio, a minha fortaleza, e nele confiarei...
‒ Mas que merda é essa que deu nele?! ‒ pergunta o primeiro astronauta.
‒ É um salmo da Bíblia! ‒ identifica um colega. ‒ Ele é um lunático cristão, foi assim que ele conseguiu um grande apoio quando tomou o poder nos Estados Unidos!
‒ A colônia é laica! Tenha mais respeito pelas vítimas, somente algumas delas eram cristãs! ‒ grita outra astronauta.
‒ Mil cairão ao teu lado, dez mil à tua direita... ‒ continua o general, gesticulando para seus guardas. Estes, sem pestanejar, crivam o astronauta viúvo de balas, para desespero dos demais, que tentam acudir seu corpo inerte e ensanguentado. 
O clima é extremamente tenso. Ninguém se atreve a dizer mais nada enquanto o militar continua a recitar a passagem bíblica.
‒ ...fartá-lo-ei com longura de dias e lhe mostrarei a minha salvação. ‒ conclui Christianson, abrindo os olhos. ‒ Vocês acham que eu gosto de fazer esse tipo de coisa? Agora, mais do que nunca, suas vidas são extremamente preciosas. Vocês e seus companheiros do lado de fora, são literalmente o futuro da humanidade e eu recebi humildemente a missão divina de guiá-los. Este momento entrará para a história como o lendário dia em que a humanidade renasceu. Levantem-se contra mim, duvidem dos meus desígnios ainda que por um só instante, e vocês serão apagados da história, como o companheiro de vocês aqui. Juntem-se a mim e vocês terão um futuro grandioso, sendo relembrados eternamente como os pais fundadores da humanidade. Vocês serão figuras míticas, como a família de Noé após o dilúvio.
Silêncio. Ninguém se atreve a dizer uma palavra.
‒ Senhorita Vogel, meu holandês pode estar um tanto enferrujado, mas estou certo de que não sou esses nomes que você acaba de pensar e sua ideia tem tudo para dar errado.
A belga arregala os olhos, diante dos semblantes confusos de seus colegas.
‒ Mas... Eu não disse nada! ‒ reage a jovem.
‒ E você, Mike, não adianta. Peter, Daniel e Simon já sabem de tudo o que está ocorrendo. Eles mesmos nos ajudaram a tanger seus colegas para o abatedouro. Eles não vão ajuda-lo, desista.
O pesquisador estadunidense, estarrecido, tenta buscar alguma explicação para o que está acontecendo:
‒ Você...
‒ ...lê pensamentos? Sim, eu leio. Este é um dos poderes divinos investidos em mim para guiar vocês. ‒ responde o general.
‒ Mas, essa tecnologia...
‒ Esqueça. Nada que se compare às minhas habilidades.
Cercado física e mentalmente, o grupo não pode nem sequer pensar em uma saída. O nefasto silêncio que toma conta do recinto é quebrado por uma tímida voz vinda do fundo da sala:
‒ “Acrescenta-nos a fé.”
Reconhecendo um cristão, o general sorri e responde:
‒ “Levanta-te e vai; tua fé te salvou.”

...

‒ Talvez eu tenha utilizado a metáfora errada. Agora eu vejo que estou muito mais para Moisés, guiando o povo perdido no deserto, do que para Noé, com tudo o que precisa em sua arca. ‒ admite o Reverendo Christianson, como se autoproclamou. ‒ Um ano já se passou desde que tomamos o controle da colônia. Não temos absolutamente nenhum meio de retornar à Terra e é só uma questão de tempo até que nossa comida acabe. Maldito Dr. Walker! Por que ele fez isso?!
‒ Receio que nunca saberemos... ‒ suspira Thomas. ‒ E essa plantação que custa tanto a dar frutos? Acho que morreremos muito antes de colhermos uma batata sequer.
‒ E depois? Suponhamos que a plantação vingue, e depois? Esqueça os dez anos, levaremos muito mais tempo para voltar. Não podemos comer só legumes nessa eternidade, precisamos de carne e a droga do módulo de pecuária ainda estava em fase experimental quando partimos.
‒ Bem... Eu tenho uma ideia. Só não sei se você irá gostar...
‒ Prossiga. ‒ pede o reverendo, já imaginando que a ideia do amigo seja a mesma que a sua: instituir mutilação no código penal que ele desenvolveu, com fins de obter proteína. Ou, quem sabe, promover lutas nas quais participantes se digladiam até a morte e quem perder vai para a panela.
‒ Você sabe, nada apodrece nesse solo árido, gelado e sem vida de Marte...
‒ Solo?
‒ É, os corpos que enterramos há cerca de um ano ainda devem estar bem conservados. Nós poderíamos aproveitar a carne deles. Eu sei que essa ideia é horrível, mas situações desesperadas requerem medidas desesperadas!
Christianson faz cara de nojo.
‒ Carne preta? É sério, essa é a sua ideia, Thomas? Que horrível!
‒ A essa altura, meu caro, só imagino aqueles presuntos como uma iguaria única. Imagine, carne seca marciana! Lá na Terra, nos velhos dias, haveria gente pagando milhões por alguns gramas no mercado negro.
Christianson tem um estalo:
‒ Iguaria... Deserto... Maná!
‒ O quê?
‒ Isso é a providência divina, Thomas! A carne desses infelizes foi purificada pelo solo marciano, virou maná, símbolo da nossa comunhão com a terra deste planeta que nos acolheu! Venha, depois da missa de hoje teremos um banquete de ação de graças!

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