Tão logo é notificado sobre o retorno da Arca, o reverendo se dirige à sacada de seu palácio, o edifício mais alto da colônia, uma espécie de castelo metálico com traços de igreja, encimado por uma imponente cruz de ferro. No céu avista-se, através da imensa redoma de vidro vulcânico que separa a colônia de seu inóspito ambiente externo, um ponto inicialmente brilhante, tal como uma estrela, que se divide em dois ‒ quando o Arcanjo se desprende da Arca para retornar à sua função de defender a colônia de possíveis asteroides e meteoritos. O segundo vai se tornando escuro e cada vez maior à medida que se aproxima. Finalmente, a grande nave-mãe desacelera e adentra o porto espacial de Bethesda, com sua própria redoma pressurizada, isolada do restante da colônia.
Na praça central, diante do palácio, preparam-se festividades em comemoração à missão bem-sucedida. Um coral infanto-juvenil ensaia cânticos enquanto robôs preparam as decorações e alguns técnicos testam um enorme painel eletrônico que apresentará imagens da expedição marciana na Terra e, posteriormente, iniciará a contagem regressiva para o aniversário de 200 anos da colônia, no dia seguinte. Ao ver a figura do reverendo, todas as pessoas se curvam em saudação, como de costume, mas, para sua surpresa, já não o veem quando retomam suas posturas.
Já na doca principal, o reverendo observa os robôs que estão descarregando os contêineres vindos das sete naves-filhas que se reuniram com a Arca após deixar os módulos com os casais na Terra. Dentro deles há de tudo: metais, terras raras, obras de arte, animais, plantas, unidades de armazenamento de dados contendo zettabytes de informação, mostras de solo, ar, água de rios e mares, pessoas.
Um a um os módulos individuais de sono criogênico são levados para uma sala de quarentena, onde, através de um espelho, o reverendo e uma pequena comitiva de auxiliares e técnicos observam o grupo terráqueo ser despertado, isto é, ser ejetado de seus módulos por um robô controlado remotamente pelo reverendo.
‒ Bem-vindos a Marte, escória terráquea. ‒ “saúda” Christianson através de alto-falantes que reverberam dentro da sala.
Desnorteado, o grupo não entende nem de onde vêm nem o que significam esses sons incompreensíveis. Ioṣū, entretanto, alegra-se ao ver Dayad, que se esforça para levantar e ir ao seu encontro, o que chama a atenção do reverendo.
‒ Você está bem? ‒ pergunta Ioṣū, apalpando o corpo de sua companheira em busca de possíveis ferimentos.
Dayad anui com a cabeça e abraça Ioṣū, feliz em revê-la.
‒ Viram aquilo? Duas fêmeas, se tocando e se abraçando daquele jeito! Que horror! ‒ aponta um técnico da comitiva.
‒ O que esperar deles? São demônios! Nem sequer falam língua de gente. ‒ comenta outro. ‒ Uma coisa que eu percebi ainda nas filmagens anteriores é que os lábios deles nem parecem se mexer quando falam. Parece que eles não têm nem “b”, nem “m” e nem “p”!
‒ Nem Bíblia, nem moral, nem princípios! ‒ condena o reverendo.
‒ É... Mas vejam, ao menos parece que tem um casal normal ali. ‒ aponta um auxiliar para um homem e uma mulher que também se abraçam, mais adiante.
‒ Que casal pode haver sem comunhão em Cristo?! ‒ irrita-se o reverendo. ‒ Esqueceram-se de que esses demônios vivem no pecado e na perdição?
‒ É verdade... ‒ anuem os demais.
‒ Agora, quietos! Vou me comunicar com eles, para saber quantos mais deles existem e onde estão seus focos de resistência ainda não detectados.
Os homens concordam e se silenciam, enquanto Christianson olha para o grupo e se concentra.
‒ E então, alguém aí sabe onde nós estamos? ‒ pergunta Zioiz.
‒ Não sei, mas tenho uma ligeira impressão de que estamos longe de casa... ‒ supõe Enā’y, observando o sinistro robô no canto da sala.
“Aquele robô é o menor de seus problemas.”
‒ Quem disse isso?! ‒ assusta-se Enā’y, fitando suas companheiras.
‒ Quem disse o quê? ‒ questiona Ṣōd, intrigado.
‒ Vocês não ouviram? Uma voz disse que aquele... sei lá o quê lá, é o menor dos nossos problemas! ‒ exclama Enā’y, perturbada.
“Não foi nenhum de seus companheiros que falou, eu falei!”
‒ Quem é você?! ‒ indaga Enā’y, atônita.
“Eu sou... Deus!” ‒ responde a voz, em tom triunfante.
‒ “Deus”? E o que é “deus”? ‒ inquire a terráquea, ainda mais confusa.
Christianson arregala os olhos, para estranhamento de seus acompanhantes.
“Com quem você está falando, Enā’y?” ‒ pergunta Dayad, curiosa.
‒ Uma voz está falando comigo, não sei quem é, mas parece aquela mesma que disse algo estranho logo quando acordamos! ‒ infere a caçadora. ‒ Como é que você fala a minha língua?! Você é Akonū?
“Akonū? Sim, sou Akonū...” ‒ responde a voz, agora mais amigável. “Diga-me, onde estão escondidos os outros Akonū?”
‒ Os outros Akonū? ‒ estranha Enā’y.
‒ “Os outros Akonū”? A voz disse isso? ‒ pergunta Ṣōd. ‒ Hahaha!
O riso toma conta do grupo terráqueo, para espanto dos marcianos.
“Silêncio!” ‒ grita a voz, em vão.
O erro gramatical ao aplicar plural masculino para uma população mista além de desacreditar o reverendo ainda o tornou motivo de chacota. Nunca antes tão humilhado em toda sua vida, Christianson aciona o robô, que efetua um disparo a laser contra Ṣōd.
‒ Arrrrgh!!! ‒ urra o jovem, tombando de imediato.
Suas companheiras urgem em sua direção, deparando-se com uma grande queimadura em seu peito.
‒ Ṣōd, não!!! ‒ grita Enā’y, desesperada.
‒ Zāehak... ‒ murmura o jovem, agora inerte.
Os homens atrás do espelho sorriem e parabenizam o reverendo pelo tiro certeiro, massageando seu ego ferido. Mais irada do que consternada, Enā’y olha para o robô e se volta para suas companheiras:
‒ O que é pior do que uma tragédia?
Entendendo a mensagem, as outras se escondem atrás dos módulos criogênicos, tais como sarcófagos encostados nas paredes, não sendo mais visíveis do espelho.
‒ Agora estão com medo... ‒ ri-se um dos operadores.
‒ Ingrediente principal do respeito. ‒ completa o reverendo, voltando o robô na direção do grupo.
Assim que o robô se aproxima, para surpresa do reverendo, seu corpo metálico é esmagado pelo peso de um dos módulos, jogado por Dayad.
“Maldita! Você vai pagar por isso!” ‒ grita Christianson com Enā’y, sem perceber que está se dirigindo à pessoa errada. “Má hora eu decidi trazer vocês para nosso planeta!”
Dayad, alheia às bravatas inimigas, arranca a pistola a laser do robô esmagado e atira contra o espelho, para espanto dos marcianos. O disparo, entretanto, ricocheteia, retirando somente parte da camada reflexiva do espelho, sem danificar significativamente a proteção. Atônitos, os homens veem a terráquea se aproximar, de arma em punho.
‒ Não se preocupem, esse vidro é blindado, não há nada que ela possa... ‒ a fala de um dos técnicos é interrompida por uma coronhada no vidro.
Dayad, contra os conselhos que suas companheiras lhe sussurram, procede até a marca do disparo, de onde olha para o interior da câmara onde estão os marcianos, que pulam para trás, apavorados.
‒ Isso agora já foi longe demais! ‒ enfurece-se o reverendo. ‒ Guardas!
Cinco guardas que esperavam do lado de fora ‒ três robôs e dois humanos ‒ adentram a sala, efetuando disparos elétricos contra o grupo. Dayad reage, atirando com sua pistola a laser contra um dos robôs, mas este se defende com um escudo de vidro vulcânico que faz o disparo ricochetear e acertar o braço de Zioiz.
‒ Ai! ‒ grita a caçadora, pouco antes de levar um choque e desfalecer.
Temendo causar ainda mais estragos, Dayad joga sua pistola ao chão e mostra as palmas de suas mãos, em sinal de paz, gesto repetido por suas companheiras. Vendo isso, o reverendo interrompe o ataque.
‒ Vejamos... Levem esse casal para o laboratório. ‒ ordena Christianson, apontando para o corpo desacordado de Zioiz e seu companheiro, que tenta inutilmente acudi-la. ‒ O pessoal lá vai adorar dissecá-los.
Um guarda robô lança uma poderosa descarga elétrica que faz o terráqueo desmaiar, levando-o junto com sua companheira, em seguida.
“Por que não consigo ativar a visão agora?!” ‒ desespera-se Dayad, tocando a ferida em seu braço por onde a infusão foi injetada, como se para se convencer de que aquilo foi real.
Ioṣū segura sua mão e sorri, tentando tranquilizar a companheira.
‒ Aquelas duas depravadas ali. ‒ aponta o reverendo, seguido de olhares dos guardas. ‒ Aliás, deixem que eu cuido delas!
Christianson apanha uma arma a laser da mão de um dos guardas e adentra a sala, mesmo contra as recomendações de seus subalternos, uma vez que a quarentena ainda não havia sido concluída. Ele então aponta a arma para o casal, ao que Dayad tenta recuperar a arma que havia jogado no chão, mas o reverendo dispara contra ela, afastando-a ainda mais.
‒ Tentou atirar em nós uma vez? Corajosa. Duas vezes? Estúpida! Antes de morrer você ainda vai pagar caro por tanta audácia, sua diabinha! ‒ exclama o reverendo, apontando sua arma e disparando na cabeça de Ioṣū, para desespero de Dayad.
A jovem, atônita, tenta reanimar sua companheira, aninhando a cabeça dela em seus braços, em vão. Intrigado por nem sequer ouvir um gemido de angústia da terráquea, o reverendo a observa mais de perto e, como se finalmente entendesse um mistério, exclama mentalmente a Dayad:
“Mulher, lésbica, baixinha, membro de uma raça inferior que acreditávamos já termos extinguido e, além disso... muda! Como pode, tanta fraqueza num só lugar!?”
Dayad segura o choro e olha nos olhos de Paul com tamanha ira que até seus guardas avançam para intervir, ainda que ela esteja desarmada.
“Nada do que você diz faz o mínimo sentido.” ‒ responde Dayad. “Mas, se ser covarde é a única coisa que você consegue, ao menos seja um covarde por completo e termine seu trabalho. Mate-me agora ou farei você e sua gente se arrependerem amargamente do dia em que cruzaram o nosso caminho!”
Pela primeira vez na vida, Christianson se sente intimidado ‒ não só fisicamente, como também mentalmente. A ordem natural das coisas para ele sempre foi estar no lugar de ameaçador, nunca de ameaçado. Entretanto, agora ele se vê diante de um diminuto, porém colossal dilema: se ele matá-la ali, agora mesmo, viverá para sempre com o peso de ser um covarde, como tantas vezes sua irmã já o chamou. Mais do que isso: se ele matá-la agora, ele estará obedecendo às ordens de uma mulher, forasteira, prisioneira, homossexual, selvagem e deficiente. Que desgraça poderia ser maior do que essa para um homem em sua posição? E por que ele se sente tão excitado com isso tudo?
‒ Perdão, Vossa Santidade, mas, o que faremos agora? ‒ pergunta um guarda, tirando o reverendo do turbilhão de pensamentos que o invadiu.
‒ Ah, sim... ‒ balbucia o reverendo, algo raro de se ver. ‒ Esses aí desmaiados vocês podem engaiolar e deixar na praça central para o povo ver. Considerem isso meu presente especial para o bicentenário: o primeiro zoológico em toda história da colônia. Quanto aos presuntos, enterrem lá fora para serem purificados. Logo, logo teremos carne seca importada à vontade, um verdadeiro banquete exótico, tal como achávamos ter sido privilégio apenas dos nossos pais fundadores. Agora esta aqui... Tratem de dar-lhe um bom banho, vesti-la de maneira apropriada e levá-la aos meus aposentos. Eu hei de convertê-la ainda esta noite...
Quanta ação e emoções! Um grande sofrimento aos terráqueos. A esperança é Dayad, que será recebida pelo reverendo. Valeu esperar!
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