Dayad acorda com um jato de água fria
em seu rosto. Desorientada, ela tenta se levantar, mas escorrega e cai logo em
seguida, para o riso de seus algozes.
‒ Ei, diabinha, vire de costas para o
papai aqui! ‒ zomba o guarda, segurando a mangueira entre as pernas.
‒ Mais respeito! Ela pertence ao
reverendo! ‒ repreende outro guarda.
‒ Por favor, feche o fluxo. Vou lá ensaboá-la.
‒ pede a serva designada para esta tarefa.
A marciana leva uma esponja e um
frasco de detergente, geralmente utilizado por robôs na limpeza do local ‒ um
grande celeiro anexo à plantação de milho marciano, uma variedade transgênica
mais robusta e apta para o solo e clima locais, sendo uma das bases da
alimentação da colônia. Para sua surpresa, a terráquea se levanta sozinha,
agora com semblante sereno, e se deixa ser ensaboada sem qualquer resistência.
‒ É o melhor que você faz. Se
acostume, não resista, que dói menos. ‒ sussurra a serva, como se Dayad
entendesse.
‒ Ela gosta de mulheres, essa
sem-vergonha. ‒ comenta um guarda.
‒ É... E essas estranhas marcas no
braço dela? ‒ atenta o outro.
‒ Coisa do Satanás. ‒ responde o
primeiro.
Assim que termina o serviço, a serva se
afasta e o enxágue começa. Entretanto, a diversão dos guardas já não é mais a
mesma, pois a terráquea não esboça qualquer reação, mesmo quando o guarda
direciona o jato às suas partes íntimas.
‒ Vamos ver se ela vai continuar com
essa cara de paisagem quando eu puser o jato na potência máxima, hahaha! ‒ ri forçosamente o guarda, aumentando a
vazão da mangueira.
‒ Cuidado, homem, assim você pode
machucá-la e o reverendo vai nos matar! ‒ adverte o colega.
‒ É, se isso pegar nos olhos ela é
capaz de ficar cega! ‒ avisa a serva.
‒ Calma, é só para ver a reação...
A fala do guarda é interrompida por
uma visão surpreendente: Dayad se defende do jato usando a forma redonda do
frasco de detergente, deixado às pressas pela serva, que temia tornar-se também
alvo dos guardas assim que estes religassem a mangueira. Formando uma espécie
de escudo aquático ao fazer a água resvalar ao seu redor, Dayad se aproxima do
trio, ao que o guarda muda o jato de direção, mas seus movimentos são seguidos com
exatidão extrema pela terráquea.
‒ Desligue a mang... ‒ tenta gritar o
outro guarda, quando o jato é redirecionado por Dayad, acertando em cheio seu
rosto e fazendo-o cair ao chão.
O primeiro guarda sequer tem tempo de
processar como e quando as posições se inverteram quando sente a mangueira
entre suas pernas esmagarem seus testículos devido a um poderoso chute nela
desferido pela terráquea. Dayad então direciona o jato para a boca do guarda,
fazendo-o engolir uma torrente colossal até morrer afogado. Aterrorizado, o
outro guarda corre e fecha a torneira, acreditando ainda poder salvar o amigo e
“desarmar” a adversária, mas o traumatismo craniano que esta lhe causa ao
arremessar o pesado esguicho metálico frustra seus planos.
‒ Por favor, não me mate! ‒ implora a serva,
ajoelhando-se de cabeça baixa e levantando suas mãos em rendição.
Sem resposta, a marciana lenta e
temerosamente ergue o rosto, apenas para ver a terráquea à distância, levando
no corpo somente o cinturão de um dos guardas contendo pistola a laser e
cassetete de vidro vulcânico, usar o distintivo de um deles para abrir a porta
e desaparecer.
...
‒ Impossível! Como?! Como isso foi
capaz de acontecer?!
‒ Estou tão perplexo quanto Vossa
Santidade.
‒ Meu erro foi ter confiado naqueles
guardas novatos, despreparados, para escoltar a diaba!
‒ Aqueles eram membros de elite da
guarda pessoal de Vossa Santidade.
‒ Sim, mas eram novatos nesse cargo!
Aliás, eles erraram, eu nunca erro! Erraram e pagaram com suas vidas por seu
erro. Eu deveria ter enviado você para essa missão, Simon, ao invés de mandar
você supervisar os preparativos para o bicentenário... Já sei, vou acessar a
mente dessa diabinha e logo-logo saberemos onde capturá-la!
O reverendo se concentra. Como se já
não houvesse paredes ao redor, ele escuta as conversas de todas as pessoas,
mesmo seus monólogos mentais, em uma área cada vez mais ampla. Todas vozes
familiares. Nenhum sinal da terráquea.
‒ Que inferno! Não consigo alcançar
aquela diabinha. Ela ainda deve estar no setor agrícola. Leve quantos guardas
quiser, homens e robôs, só não a machuquem. Sejam rápidos e não deixem a
população saber da fugitiva. Já me basta a vergonha de ter guardas
imprestáveis...
O servo anui e parte.
Enquanto isso, no setor agrícola.
“Acabou. Já não reconheço mais nada.”
‒ constata Dayad, agora do lado de fora do celeiro, referindo-se à visão que
teve enquanto estava desacordada.
Guiada por seus instintos, ela começa
a escalar o edifício, a fim de observar do alto o lugar onde se encontra. Do
topo, Dayad consegue visualizar quase toda a colônia ‒ um sem-número de
edifícios reluzentes, de metal e vidro, uns maiores e outros menores, dispostos
de maneira remotamente semelhante às ruínas manauaras. Tudo coberto por uma
enorme redoma de vidro translúcido, através do qual a aparente noite estrelada
é cortada por um sol tímido e distante.
“Mas, que lugar estranho! O céu, a
terra, as casas... De familiar, só essas plantas!” ‒ pensa Dayad, tão
deslumbrada quanto espantada.
Um ruído lhe chama a atenção. Ao
longe, na praça central, uma multidão se reúne em torno de uma jaula.
“Na certa é por isso que não vejo
ninguém por perto. Parece que todo mundo está lá, mas o que será aquilo?”
Dayad se aproxima o máximo que pode e
se esforça para identificar o que está no centro de tamanha algazarra, até notar
formas humanas de cor contrastante em relação às pálidas figuras do lado de
fora.
“Enā’y e as outras devem estar lá! Tenho
que salvá-las, mas, como?” ‒ aflige-se Dayad, tentando traçar uma estratégia em
sua mente. “O que é aquilo?!”
Um drone com uma câmera acoplada se
aproxima de Dayad, para seu espanto. As imagens são transmitidas diretamente
para as lentes de contato de Simon, que, à distância, coordena uma emboscada no
local.
‒ Ela se escondeu atrás do
reservatório, no terraço do celeiro principal. Dividam-se em dois grupos, assim
ela não terá para onde fugir! ‒ ordena o servo do reverendo, pelo rádio.
Os guardas anuem e prosseguem,
enquanto Simon dirige o drone ao redor do edifício e descobre, para seu
espanto, que a terráquea já não se encontra mais no local.
‒ Mas, o quê...?
A transmissão é interrompida
abruptamente, ao passo que os guardas notam, à distância, o drone espatifar-se
no chão após um disparo a laser.
‒ Ouvi dizer que essas criaturas
vieram diretamente do Inferno, são demônios! ‒ comenta um guarda, amedrontado.
‒ Na jaula elas não pareciam tão
perigosas assim. ‒ retruca o colega.
Na praça central, o clima é de euforia.
O público grita, joga comida e tenta tocar em Enā’y, Iouria e Ayizur, que se
esforçam para se manter no centro da jaula, mas é impossível ficar fora do
alcance dos braços mais longos e perversos. Um deles consegue tocar nos longos
cabelos de Iouria, que revida e morde o braço de seu assediador, para espanto
deste e fúria dos guardas, um dos quais lhe dispara um dardo tranquilizante.
‒ Você vai pagar por isso, seu animal!
‒ grita o marciano com o braço sangrento.
‒ Nossas ordens são para deixá-los
vivos até a festa do bicentenário. Depois vocês podem fazer o que quiser com
esses bichos! ‒ exclama um guarda.
‒ Iouria! Iouria, acorde! ‒ grita
Ayizur, chacoalhando o corpo do amigo.
‒ O veneno dessa zarabatana não parece
ser letal. ‒ analisa Enā’y. ‒ Parece que elas nos querem vivas, por enquanto.
‒ Como você consegue ficar tão calma
num momento como esse?! ‒ indaga Ayizur, desesperada. ‒ Nem sequer sabemos onde
estamos, quem são essas pessoas, como e se voltaremos para casa...
‒ E de que adianta ficar nervosa
agora? ‒ responde Enā’y. ‒ Meu palpite é de que essa gente toda mais cedo ou
mais tarde irá se dispersar e então ficará um desses vigias. Se eu conseguir
pegar essa pistola-zarabatana dele, teremos uma chance de fugir daqui e
descobrirmos o paradeiro das outras.
Longe dali, os dois grupos de busca se
encontram dentro do celeiro, sem sinal da fugitiva. Simon envia um segundo
drone, observando as cercanias, até que percebe algo se mover entre a folhagem.
‒ Rápido, para a plantação! ‒ avisa
Simon aos guardas, que correm imediatamente até o local.
A densa e alta vegetação torna
impossível ver além do que os braços permitem. Os robôs são os primeiros a
tombarem, inaptos para esse tipo de ambiente, são presas fáceis na mira de
Dayad, cuja rapidez, devida à baixa gravidade do planeta vermelho, e baixa
estatura, incomum para o povo de Marte, tornam-na capaz de esgueirar-se com
extrema facilidade, sem ser percebida.
Um súbito ruído chama a atenção dos
guardas os quais, ainda mais nervosos depois do sumiço dos robôs, não hesitam e
disparam na mesma direção. Sabendo de onde vêm os disparos, Dayad atinge dois
guardas por trás, que morrem sem saber que estavam atirando contra uma
inofensiva pedra jogada pela terráquea para distraí-los. Acostumada a caçar nas
matas desde pequena com sua mãe, Dayad gradualmente tange os poucos guardas que
restam até onde quer e...
‒ Acho que acertei! ‒ comunica um dos
guardas a Simon, correndo na direção do corpo tombado mais adiante.
‒ Droga, Anthony, eu lhe disse para
não machucá-la! ‒ esbraveja Simon, pelo rádio, acompanhando a cena do alto
através do drone.
‒ Nada que um curativo não... Merda! ‒
exclama o guarda diante do corpo de um de seus colegas, derrubado por ele
mesmo.
‒ O que houve, Anthony? Anthony?
Simon não obtém resposta. Ele tenta
entrar em contato com os outros guardas, em vão. O ouvido de Dayad, encostado
na terra, tampouco capta sinais de movimentação inimiga. Sem saber se o alvo
foi neutralizado ou não, Simon desce o drone a fim de obter imagens mais
próximas.
‒ Se não tivéssemos enviado todas
nossas câmeras com visão térmica para as colônias na Terra... ‒ murmura o
marciano, quando, de repente, a transmissão é interrompida. ‒ Droga!
“Agora tenho que encontrar um lugar
seguro e esperar...” ‒ planeja Dayad.
Quando falou antes de Dayad, não imaginava um cenário tão especial assim para ela! Eles não têm a menor ideia das habilidades de sobrevivência dela. E os 'poderes' do Reverendo sempre surpreendem. A ilustração faz parte inseparável dos capítulos. Minimalistas, mas muito expressivos e o contraste dos traços, remete bem à diferença dos povos que se enfrentam: uma ambição e mal extremos contra um povo natural e bom. Parabéns, mais uma vez!
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