Dayad fecha os olhos com nojo e pavor
de seu atacante, cujas mãos já quase tocam sua pele. Como se ele se alimentasse
do medo, Paul sente cada vez mais prazer à medida que se aproxima, triunfante,
diante de sua tão cobiçada presa. A ideia de ser violentada pelo assassino de
sua amada e não poder fazer nada para impedir isso faz o corpo de Dayad
estremecer com um sentimento inominável, que custa a arrefecer mesmo depois de
ouvir o som de vidro se espatifando e o subsequente ruído de um corpo pesado
caindo ao chão.
‒ Não tenha medo, pode abrir os olhos.
‒ diz Perpetua, jogando fora o que sobrou da garrafa de uísque de milho
marciano que utilizou para nocautear seu irmão.
Dayad, ainda se refazendo do trauma,
enxerga o corpo do reverendo no chão, com uma pequena poça de sangue escorrendo
de sua cabeça, cacos de vidro por todos os lados e, finalmente, a alta e descolorida
mulher que estava presa atrás da parede agora ali, em sua frente. Dayad já
havia visto uma mulher marciana antes, mas, não assim, nua. O que mais chama
sua atenção, entretanto, são os arranhões e hematomas na pele dela, dos quais
sente uma estranha e irresistível vontade de cuidar. Perpetua, que nunca havia
visto uma mulher tão diferente antes, se esforça para conter seu deslumbramento
diante da beleza e da pequenez da estrangeira, a qual ela gostaria de aninhar
em seu peito e levar para longe dali, onde ninguém possa lhe fazer mal.
‒ Deixe-me soltar essas amarras... ‒ diz
a marciana, apanhando um caco de vidro no chão e avançando em direção a Dayad,
que arregala os olhos, assustada.
Percebendo que a visitante não entende
sua língua, ela mostra, através de gestos, que vai usar o caco para cortar as
amarras. Dayad estende a mão, sem muita escolha. Em seguida, Perpetua liberta
seus pés.
“Muito obrigada.” ‒ gesticula Dayad.
Entendendo o sentimento de gratidão
mais pelo contexto do que pelos gestos, Perpetua faz sinal de espera e se
agacha para retirar o aparelho de leitura de pensamentos usado por seu irmão.
“Você entende o que estou dizendo?” ‒
testa Perpetua.
“Sim! Então era assim que ele
conseguia se comunicar conosco?” ‒ surpreende-se Dayad.
“É, meu irmão gosta de brincar de
Deus, mas os poderes dele não passam de truques tecnológicos.” ‒ explica
Perpetua.
Dayad se surpreende ao saber do grau
de parentesco da dupla, mas depois de tudo o que viu, já nem fica tão intrigada.
“Obrigada por me libertar.” ‒ agradece
Dayad.
“Eu que agradeço.” ‒ retruca a
marciana. “Sem você para distraí-lo, eu não conseguiria emperrar a porta de
vidro usando um dardo tranquilizante e acessar o mecanismo de abertura do lado
de fora.”
“Fico feliz.” ‒ sorri a terráquea,
ainda assimilando toda aquela informação nova. “Desculpe mudar de assunto, mas,
você sabe onde ele prendeu minhas companheiras? Preciso encontrá-las e voltar
para casa.”
Perpetua pensa um pouco e finalmente
responde:
“Acredito que sim. Mas antes,
precisamos de armas e roupas.”
“Roupas?”
“É, algo para nos vestir.” ‒ explica
Perpetua, enquanto revista o cômodo.
“Vestir?”
Perpetua faz menção de tocar no leitor
de pensamentos a fim de verificar se este está funcionando bem, mas se detém ao
perceber que o aparelho funciona, suas palavras é que não fazem sentido para a
terráquea.
“Você costuma andar assim como está
agora, sem usar nada para cobrir o corpo, quando anda em meio ao seu povo?”
“Quase, mas também usamos adornos e
pinturas. E você?”
“Que horror! Os homens de lá obrigam
as mulheres a ficarem nuas também? Eu só estou nua agora porque meu irmão me
manteve presa assim.”
“Homens? Homens não nos forçam a nada.
Ninguém força ninguém a nada. Ouvi dizer que em alguns lugares as pessoas
cobrem o corpo por causa do frio, mas, na nossa terra, andamos assim
normalmente.”
“Que estranho...”
“Mas, por que ele manteve você presa?”
“É uma longa história, eu lhe conto
depois.”
Perpetua encontra um de seus antigos
vestidos e, atrás de um compartimento secreto, armas e um escudo antilaser.
“Você sabe atirar com uma destas?” ‒
pergunta a marciana, oferecendo-lhe uma pistola a laser.
Dayad anui e as duas partem para o
elevador, através do qual chegam ao Inferno, como é carinhosamente chamada pelos
marcianos a prisão localizada no subterrâneo da igreja. Antes mesmo que a dupla alcance a cela, um
alarme soa.
“O que é isso?” ‒ espanta-se Dayad.
“Droga! Fomos identificadas!” ‒
responde Perpetua, olhando para todos os cantos até encontrar e alvejar a
câmera que as flagrou. “Depressa, por aqui!”
Perpetua agarra Dayad pela mão e
avança pelo corredor o mais rápido que pode, mas, para sua surpresa, sua
companheira arranca com uma velocidade sobre-humana e a arrasta consigo.
“Calma! Aqui... aqui estamos!” ‒
“grita” a marciana, espantada.
Dayad freia e finalmente se depara com
suas companheiras.
‒ Dayad! ‒ alegra-se o trio, deixando
o nervosismo causado pelo estranho ruído do alarme de lado, ao ver que sua
companheira está bem.
“Então esse é o seu nome?” ‒ infere
Perpetua, chegando logo depois, para espanto das terráqueas.
“Sim, e estas são Enā’y, Ayizur e
Iouria.” ‒ aponta Dayad para as três.
‒ Ela passou para o outro lado! ‒
exclama Iouria, estupefato.
‒ Não diga bobagem! ‒ retruca Enā’y, confiante
na amiga ainda que a situação, de fato, lhe pareça estranha.
“Nós viemos libertar vocês!” ‒ anuncia
Dayad, disparando contra a fechadura eletrônica da cela, em seguida.
Aliviado, o trio deixa o cubículo e se
aproxima com cautela, feliz de rever Dayad, mas apreensivo diante da marciana.
‒ Quem é ela? ‒ pergunta Enā’y.
“Ela também estava presa, assim como
vocês, e vai nos ajudar a achar as outras e ir embora daqui. Vamos!”
O grupo rapidamente sobe de elevador
até a nave da igreja, no térreo, de onde Perpetua almeja sair pela porta de
emergência, a fim de evitar encontrar os guardas do lado de fora. Para sua
surpresa, entretanto, um rosto familiar antecipa seus passos.
‒ Simon!?
‒ Abaixem as armas! ‒ ordena o servo
do reverendo, acompanhado de dois guardas humanos e um estranho androide, cuja
aparência lembra um robusto cavaleiro medieval.
‒ Seu mestre está morto, agora você
deve lealdade a mim! ‒ exclama Perpetua, sem tirar o dedo do botão que aciona a
pistola.
‒ Assassina! ‒ dispara Simon,
enfurecido. ‒ Nunca servirei a uma mulher, ainda mais a uma traidora,
fratricida!
Perpetua se defende dos disparos
usando seu escudo, enquanto Dayad revida e atira contra os inimigos. Enā’y,
Ayizur e Iouria se escondem atrás dos assentos da igreja, sem saber o que
fazer. Ambos os lados se entrincheiram ao redor do altar, até que o androide,
para o espanto do lado terráqueo, levanta voo e começa a disparar do alto.
‒ Droga! ‒ exclama Perpetua, atirando
no androide, que desvia dos disparos com surpreendente agilidade.
“O que é aquilo?!” ‒ pergunta Dayad,
assustada.
“É um protótipo da próxima geração de
guardas robóticos que o meu irmão vinha desenvolvendo.” ‒ explica Perpetua,
defendendo-se dos disparos, cada vez mais frequentes e perigosos.
‒ Desista, Perpetua, vocês não têm
outra escolha a não ser se render! ‒ grita Simon, sorrateiramente jogando uma
granada elétrica contra o grupo, tal como aquela que usou antes para imobilizar
as fugitivas.
Dayad percebe a pequena esfera metálica
rolando pelo chão e, rapidamente, a arremessa de volta para os marcianos,
eletrocutando-os no ato.
“Ótimo! Agora só temos que nos livrar
desse androide!”
Mal Perpetua tem tempo de se alegrar
quando um disparo acerta seu braço direito. Dayad, desesperada, dispara
furiosamente contra o inimigo, que se aproxima cada vez mais à medida que
desvia dos tiros. O androide se prepara para sua derradeira investida, quando,
de repente, é acertado em pleno ar por um pesado assento de pedra e se espatifa
contra parede, derrubando junto consigo a pesada cruz que coroa o altar. Dayad
e Perpetua olham para a direção de onde o assento foi lançado e se deparam com
o trio terráqueo ainda ofegante após o esforço monumental.
“Essa coisa deve pesar toneladas! Como
vocês fizeram isso?!” ‒ impressiona-se Perpetua, comunicando-se mentalmente com
o grupo.
‒ Vocês ouviram? Ela também mexe com
as nossas cabeças! ‒ irrita-se Enā’y, de dedo em riste.
“Calma, ela pode explicar!” ‒
apressa-se a marciana em retirar o leitor de mentes de suas têmporas e
colocá-lo na cabeça de Dayad.
“Era com isso que aquele sujeito
conseguia entrar nas nossas cabeças.” ‒ explica Dayad. “Mas ela acabou com ele
e salvou minha vida. Graças a essa invenção nós podemos nos comunicar.”
Agora é Enā’y que emudece ao ouvir a
voz da amiga depois de tantos anos.
“Incrível!” ‒ exclama Iouria.
Ayizur, igualmente impressionada,
contudo, nota algo que chama ainda mais sua atenção:
‒ Aquele símbolo... Vocês também já o
haviam visto antes, não?
“Sim... O símbolo dos mortos. Existem
campos inteiros cheios deles. Ioṣū dizia que esse símbolo levou à destruição de
incontáveis povos.”
“É verdade! E onde está ela?” ‒ indaga
Enā’y.
Dayad olha para a amiga e desaba em
prantos.
Perpetua, que acaba de improvisar um
curativo com uma tira de seu vestido, a fim de conter o sangramento em seu
braço, sente a tristeza de Dayad como se esta também fosse transmitida
mentalmente. Enā’y abraça a amiga, consolando-a.
“Mas, afinal de contas, onde estamos?
Quem são vocês e por que nos trouxeram aqui?” ‒ pergunta Iouria, intrigado.
Os rostos terráqueos se viram para a marciana,
como se ela fosse a resposta em pessoa. Perpetua suspira e coça a cabeça, sem
saber por onde começar...
Rapaz, quanta ação... Por essa eu não esperava! Perpetua teve sua merecida vingança! Mas deve verificar se o Reverendo morreu ou não e como fugir de Marte? Muito bom novamente... e bem expressiva a ilustração da Dayad, onde quase dá pra ver a perplexidade em seu rosto. Show!!
ReplyDeleteNão é à toa que esse capítulo se chama "união"... A nudez das personagens simboliza a opressão que ambas sofrem, ainda que de diferentes formas, o que denota um inimigo em comum contra o qual elas devem se unir.
ReplyDeleteEsse fluxo de palavras/ação que em seu movimento vão descortinando esse símbolos, deixa toda história mais empolgante e ressalta seu talento. Muito grato em participar!
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