Assim na Terra como em Marte
Saturday, March 23, 2019
Sunday, March 10, 2019
Capítulo 15: Execução em praça pública
Assim que amanhece o dia, a população
marciana ganha as ruas e marcha em peso até a praça central, primeiro porque
hoje é o grande dia do bicentenário da colônia, segundo, para saber o motivo de
tanto barulho na noite anterior e o que aconteceu em Bethesda. Rumores de que
os demônios trazidos pela Arca estavam à solta, causando morte e destruição,
logo se espalham. Cadáveres de guardas, rastros de sangue, estilhaços e marcas
de tiroteio, aliados à ausência dos espécimes na jaula em frente ao palácio,
causam pavor na população, cuja fé no reverendo Christianson, pela primeira
vez, é posta em xeque.
Encolhido no canto mais recôndito de seu
cômodo, Paul escuta aquele infindável turbilhão de pensamentos como se a
multidão se encontrasse ali, ao seu redor. Seus olhos mórbidos se dirigem ao
trono, onde até literalmente ontem reinava soberano, cheio de energia e
confiança. Sua atenção, finalmente, se volta para Dayad, adormecida depois de
um dardo tranquilizante, ali a poucos metros de distância, nua e vulnerável
como ele tanto queria. Mas, agora ele já não é mais o mesmo. Machucado física e
moralmente, o líder marciano só consegue enxergar na terráquea a fonte de sua
desgraça. Tal como dito por ela mesma quando se conheceram, era melhor que ele
a matasse logo, do contrário, ele se arrependeria amargamente de ter cruzado
seu caminho. Ela e Perpetua tinham razão ao chamá-lo de covarde, pois ele
sozinho se sente um fraco, sempre se apoiando em algo ou alguém para exercer
seu poder, a exemplo do desgastado androide Gabriel, recarregando ao lado de
Dayad.
‒ Pai, por que me abandonaste? ‒
murmura o reverendo, olhando para uma imagem de Cristo crucificado, fixada na
parede. ‒ Logo eu, seu filho mais capaz, justo e santo! O que fiz para merecer
tamanha provação?
Paul obtém o silêncio como resposta.
Não obstante, seu semblante começa a se iluminar. Com dificuldade, ele se
levanta e caminha até a janela, de onde vê o povo reunido na praça central.
‒ É isso! Tudo isso é uma provação,
uma chance que Deus está me dando para que eu prove a minha lealdade e mostre
ao povo que sou o escolhido para guiá-lo!
O reverendo rapidamente veste seus
apetrechos cerimoniais e dá voz de comando para que Gabriel apanhe a terráquea
e o acompanhe até a sacada. Ao vê-lo, o povo não se curva, como de costume, mas
aponta para o líder como se estivessem diante do próprio anticristo, que trouxe
sua horda infernal para espalhar o caos e o terror na até então pacata e
civilizada comunidade.
Valendo-se de poderosas caixas de som
colocadas previamente para uma missa campal em comemoração ao bicentenário, o
reverendo saúda a população:
‒ Povo de Deus! A paz esteja convosco!
Ao ouvir vaia como resposta, o forçoso
sorriso de Christianson se esvai e, usando de toda a capacidade de seu leitor
de pensamentos, ele invade as cabeças do público, que estremece ao ouvir um
sonoro e inaudito “Silêncio!”.
‒ Hoje, como vocês sabem, é um dia
histórico. O dia em que celebramos os 200 anos de fundação da nossa colônia,
símbolo do amor de Deus por nós, seu povo escolhido. Como as sagradas
escrituras atestam, era nossa missão reaver nossa Terra prometida e eu, como
humilde guia de vocês, os conduzi até esse objetivo, não é verdade?
‒ Mas trouxe os demônios de lá para
nos destruírem! ‒ grita um homem em meio à multidão.
‒ Precisávamos saber com quem estamos
lidando! ‒ berra o reverendo, nunca antes confrontado durante um discurso. ‒
Deus está provando a nossa fé, testando nossa capacidade de permanecermos
juntos diante do inimigo e vocês, pobres pecadores, estão mostrando a Ele que
não são dignos de retomar o planeta de nossos ancestrais, nosso por direito! Se
vocês não conseguem se unir e resistir contra um punhado de pobres diabos, o
que dizer, então, de um planeta inteiro infestado por eles? Onde está a fé de
vocês?
A plateia agora fica em silêncio.
‒ Pois eu digo a vocês ‒ eu não perdi
a fé! Resisti e lutei contra os ímpios invasores, mandei sete deles de volta
para o Inferno e, para que não restem dúvidas de que sou o escolhido de Deus,
como consta nas escrituras, deixei a última e mais perversa das crias de Satanás
para executar agora, com meus poderes divinos, aqui, diante de vocês!
Gabriel, comandado por Paul, ergue o
corpo de Dayad pelos pulsos, exibindo-a para o público. Mães e pais fecham os
olhos de suas crianças, diante do corpo desnudo daquela que carrega em si a
culpa por todos os problemas da colônia, enquanto outros semblantes parecem
divididos entre excitação e repulsa. Dayad acorda de seu sono induzido, se
deparando com toda aquela massa de gente pálida e hostil. Ela tenta se libertar,
mas as rígidas mãos do androide a mantém longe do solo, privando-lhe do apoio
necessário para empregar sua vantagem gravitacional.
‒ Vejam como se contorce essa cria das
trevas diante da luz! Contemplem o destino de todo aquele que se atrever a
levantar-se contra mim! Eu sei muito bem quem de vocês duvidou da minha
autoridade e, como mostra da minha benevolência, os deixarei viver, mas da
próxima vez...
Enquanto o reverendo conduz seu
discurso incompreensível, Dayad pouco a pouco consegue desvencilhar sua mão
mais suada das garras do androide Gabriel. Calculando a distância até a arma
pendurada em sua cintura, ela respira fundo e solta a mão de uma vez só,
arrebatando a pistola a laser e, em seguida, efetuando um disparo certeiro na
cabeça do reverendo, que cai inerte ao chão.
A plateia grita e se dispersa,
apavorada, enquanto Dayad liberta sua outra mão das garras do androide, que
tomba sozinho, sem mestre a quem obedecer. Eis que uma voz ecoa em seu
subconsciente: “...deixei a última e mais perversa das criaturas demoníacas
para executar agora, com meus poderes divinos, aqui, diante de vocês!”. Dayad
então sente seus pulsos apertarem e seu corpo ser elevado por uma força
invisível. Finalmente ela acorda, diante daquele público nefasto. Ela se
contorce, em vão, e se depara com seu algoz ali, vivo e discursando com seu tom
arrogante:
‒ Vejam como se contorce essa cria das
trevas diante da luz! Contemplem...
Aquelas palavras... Sim, Dayad teve
uma visão. Assim como previu, sua mão não tarda a escapulir por entre os dedos
metálicos de Gabriel. Com extrema agilidade, Dayad solta a mão e arranca a arma
da cintura do androide, sendo invadida por um sentimento de intensa satisfação
ao disparar contra o reverendo, vingando-se assim por Ioṣū e todas as outras
vítimas daquele homem cruel e sanguinário.
Para sua surpresa, entretanto, Paul
desvia e imediatamente revida com uma poderosa descarga elétrica antes que ela possa
disparar.
“Então você vê o futuro, não é? Pois
por essa você não esperava!” ‒ exclama o reverendo, que já havia vislumbrado
aquela visão enquanto Dayad dormia em seu cômodo. “Não se preocupe, você não
vai morrer justo agora que descobri seu segredinho, do qual pretendo me
apoderar assim que levar você ao laboratório!”
Dayad perde os sentidos. A arma cai de
sua mão. A plateia vai ao delírio.
‒ Estão vendo as artimanhas do
demônio?! Ardilosos, desprezíveis, mesmo com toda nossa hospitalidade e boa
vontade em civilizá-los, em mostrar-lhes a palavra de Deus, agem assim,
tentando nos matar na primeira oportunidade! Se eu errei, minhas crianças, foi
por ser bondoso demais! Perdão por antecipar a execução dessa cria do Satanás,
mas, foi melhor assim, pois vocês viram que agi em legítima defesa! Essa é a
forma de Deus todo-poderoso lavar minhas mãos e assim me inocentar por tirar
uma vida, ainda que abominável e esconjurada...
A outra mão de Dayad se solta devido
ao peso de seu corpo que despenca inerte, para espanto do reverendo, que chega
a dar um saltinho apavorado. Recompondo-se do susto, Paul coça a garganta e se
prepara para continuar seu discurso, quando percebe uma nova visão brotar da
mente da terráquea. Desta vez, ela se apossa da pistola a laser e dispara não
contra ele, mas, contra a cruz de ferro que coroa seu palácio/templo, fazendo o
disparo ricochetear e acertá-lo pelas costas. Surpreso com a audácia da
terráquea desacordada, o reverendo muda de planos.
‒ Bem, como eu dizia... Deus está
conosco e Ele me escolheu para executar a árdua, porém, nobre tarefa de guiar
vocês na conquista da Terra prometida. Para tanto, Ele me deu poderes divinos
para combater o mal, como vocês acabaram de ver com seus próprios olhos. E isto
é apenas uma pequena amostra dos poderes que Deus me deu para melhor servi-Lo.
‒ exclama o reverendo, erguendo-se em pleno ar, para deslumbramento geral do
povo. ‒ Algum de vocês ainda duvida de minha autoridade?!
O silêncio toma conta da multidão,
cuja visão é ofuscada pelo sol que se levanta logo atrás do reverendo, tornando
a cena ainda mais fantástica.
‒ Então, curvem-se diante de seu líder
supremo, escolhido pelo próprio senhor Deus, rei do Universo!!!
O povo se curva veementemente diante
daquele espetáculo. Pessoas choram, emocionadas e aquelas que duvidaram da
santa autoridade do reverendo se arrependem dolorosamente de, mesmo que por um
instante, perder a fé nEle. Um som de disparo de laser corta o êxtase da
plateia, que imediatamente vira seus olhos para a sacada do imponente prédio e
vê a terráquea disparando novamente, mas não contra o reverendo e sim contra a
cruz da igreja.
‒ Herege! Profana! Matem-na! ‒ gritam
pessoas na multidão, revoltadas ao verem tamanha blasfêmia.
Paul solta um riso de desprezo ao ver
que os tiros sequer chegam perto de atingi-lo. Ele poderia usar o androide para
deter a terráquea, mas, para concluir o espetáculo, resolve acabar com aquela
situação patética por conta própria.
‒ Vejam como o Satanás age
irracionalmente, tentando ferir o símbolo que amamos e louvamos, pois sabe que
não pode nos ferir! Mas, não temam, meus filhos. Agora, de uma vez por todas, arrancarei
o mal pela raiz!
O reverendo, ainda impressionado com a
resistência da terráquea à eletricidade, inicia um voo rasante, com as mãos
apontadas para Dayad, pronto para eletrocutá-la com o máximo da potência que
seu aparelho lhe permite. Esta continua a disparar contra a cruz, ainda que a
distância lhe permita mirar diretamente no reverendo. Um barulho metálico vindo
de cima chama a atenção do marciano que, antes que consiga olhar, é acertado
pela monumental cruz de ferro que se desprende do topo do edifício após tantos
tiros certeiros em sua base. A cruz, virada de cabeça para baixo, trespassa as
nádegas do reverendo assim que cai junto com ele, no chão.
A plateia grita e se dispersa, em
pânico. Gabriel, descarregado, tomba sozinho, enquanto uma poça de sangue avança
ao redor do corpo de Paul, ainda consciente.
“Mas você viu outra coisa...” ‒
murmura o reverendo mentalmente.
“Você viu o que eu quis lhe mostrar.”
‒ responde Dayad, se aproximando de pistola em punho. “Quando eu entendi que
você era capaz de captar minhas visões, forjei uma e você acreditou. Você foi
egocêntrico, só pensou em si mesmo. Eu sabia que não perceberia meu plano.”
“Por que você fala de mim no passado?”
“Porque você é passado.”
Dayad ergue o braço direito do
reverendo, que não tem forças para resistir às aterradoras intenções que ele lê
na mente de seu algoz. Ele grita, inutilmente, enquanto a terráquea arranca seu
braço com disparos a laser que queimam sua carne, provocando-lhe uma dor
indescritível.
“Não se preocupe, você não vai morrer
justo agora...” ‒ sorri Dayad, voltando-se aos aposentos do líder marciano, de
posse do braço dele.
‒ Nããããooo...!!! ‒ grita Paul,
engasgando-se com o próprio sangue.
A porta se fecha automaticamente assim
que Dayad adentra o cômodo. Ela prossegue até um sensor de mão, na parede, onde
ela coloca a palma do reverendo. Um enorme painel de controle se abre,
exatamente como havia na primeira vez em que foi trazida àquele quarto macabro.
Sem entender ao certo o que está escrito, os olhos de Dayad se fixam sobre um
mapa da colônia vista da órbita, o que ela supõe que seja o controle do canhão
orbital utilizado pelo marciano para atacar seu planeta e, pouco tempo antes, a
nave que levava suas companheiras. Instintivamente, a terráquea guia uma marca
de alvo na tela até o centro da redoma e nota um botão vermelho logo ao lado.
Ela sabe que se aquilo for o que ela acredita que seja, será o fim tanto da
colônia quanto dela mesma, o que já não lhe importa, uma vez que ela sabe que
não tem como escapar dali.
“Todas nós vamos morrer um dia, Dayad,
é a vida.”
“Essa é por você, Ioṣū.”
Dayad respira fundo e aperta o botão. Sem
perceber uma reação imediata, ela aperta o botão mais uma vez e, de repente,
ouve um enorme estrondo do lado de fora. Ela corre até a janela e vê uma coluna
de fogo atingir a redoma, fazendo a terra tremer. Assim que a primeira
investida do Arcanjo se dissipa, outra se segue, rompendo a grossa barreira de
vidro vulcânico e criando um rombo que começa a sugar tudo ao redor. A visão é
aterradora, mas não mais do que o que Dayad testemunhou em seu planeta, quando
as naves marcianas invadiram seu território. Pessoas, veículos, objetos,
pedaços de casas, tudo é sugado para o espaço até o ar ser expurgado e dentro
da redoma reinar o hegemônico vácuo exterior, para desespero de Paul, que ainda
está consciente para ver tudo isso acontecer e, finalmente, morrer asfixiado.
Dayad se apoia de costas na parede e deixa seu corpo deslizar até o chão.
Desprovida de qualquer emoção ‒ alegria, tristeza, orgulho ou remorso ‒ a
terráquea só consegue pensar em suas companheiras, na Terra e em Marte, pelas
quais finalmente fez justiça. Ela sabe que seu destino é o mesmo daquela gente
asfixiada, mas ela não se desespera. Sua missão está cumprida.
Sunday, March 3, 2019
Capítulo 14: A despedida
“Pronto, isso deve estancar a
hemorragia e cuidar da queimadura. Por sorte, o disparo não acertou órgãos
vitais.” ‒ explica Perpetua, terminando o curativo na região lateral do abdômen
de Enā’y.
“Obrigada...” ‒ murmura a terráquea.
“Agora, fique aqui. Nós vamos buscar
Zioiz e Ūāṣ, tudo bem?” ‒ anuncia Dayad, segurando a mão da amiga.
O grupo deixa Enā’y em seu leito e se
direciona à porta, rumo à outra ala onde deve se encontrar o casal. Antes de
sair, contudo, Perpetua ouve a paciente terráquea chamá-la:
“Desculpe por ter duvidado de você...”
“Tudo bem.” ‒ sorri Perpetua,
timidamente, e parte.
De porta em porta, o grupo revista
todo o laboratório de Bethesda, o qual foi designado para quarentenas e
experimentos com espécies alienígenas, sem expor o resto da colônia.
Finalmente, resta apenas uma sala ainda não revistada, justamente aquela aonde
Perpetua mais temia que tivessem levado as terráqueas.
“Não abre.” ‒ aponta Iouria, frustrado.
“Afastem-se.” ‒ pede Dayad, erguendo a
pistola a laser e disparando contra a fechadura eletrônica.
Finalmente a porta revela um interior
frio e escuro. Perpetua respira fundo e liga a luz, revelando duas macas
ocupadas, cobertas por lençóis sintéticos manchados de sangue. O clima se torna
ainda mais tenso. Dayad avança pelo cômodo, cautelosamente, e se aproxima dos
corpos, levantando o tecido do primeiro e...
“O que foi, Dayad? Quem é?” ‒ pergunta
Ayizur.
“Acho que era Ūāṣ.” ‒ conta Dayad, com
lágrimas nos olhos.
A outra terráquea se aproxima e retira
a capa, revelando um corpo masculino mutilado, desentranhado e decapitado.
Ayizur é tomada por um ímpeto de
vomitar, mas não consegue. Iouria se desespera e Perpetua, a mais afastada do
grupo, leva a mão ao rosto.
‒ Por que fizeram isso?! Por que
tamanha maldade?! ‒ grita Ayizur, dando socos no chão, inconsolável.
Dayad respira fundo e seca as lágrimas
com a mão. Ela então se encaminha até o outro corpo e, de uma vez só, retira a
capa.
O horror nos olhos de Dayad é
indescritível. Ayizur e Iouria se aproximam e não têm palavras para expressar
sua angústia e revolta. O corpo igualmente decapitado e mutilado de Zioiz tem,
ainda ligado por um cordão umbilical, um feto em formação arrancado do ventre e
posto ao lado da mãe.
‒ Nós... nem sabíamos que ela estava
grávida. ‒ murmura Ayizur, aos prantos.
“Eu... sinto muito.” ‒ lamenta
Perpetua. “Essa era a má notícia...”
‒ Então você sabia que fizeram isso
com elas?! ‒ pergunta Iouria, furioso.
“Não! Claro que não! Eu estava presa,
não sabia de nada do que estava acontecendo! Mas, uma vez que vocês foram para
a prisão e o casal ficou aqui, era possível de se imaginar que fosse para que
fizessem experimentos com seus corpos. Saber como funcionam, se são como os
nossos, guardar para a posteridade...”
Iouria olha para Dayad, como se para
confirmar os fatos, ao que esta anui pesarosamente. O terráqueo, tomado de
raiva, desfere um soco contra um armário de aço logo atrás de si, revelando uma
espécie de gaveta que se abre e revela as cabeças congeladas do casal,
juntamente com outras partes de seus corpos.
O jovem, aterrorizado pela visão
macabra, começa a arrancar os próprios cabelos e caminhar erraticamente ao
redor da sala. Dayad, cujas lágrimas se esgotaram, fecha a gaveta antes que
Ayizur, encolhida num canto, se levante e veja, piorando ainda mais a situação.
De repente, um ruído de transmissão de rádio começa a ecoar pela sala:
“Ouçam-me, demônios da Terra! Eu lhes
proponho um trato: a vida de vocês pela diabinha. Se vocês me entregarem-na,
deixo vocês irem de volta ao planetinha de merda de onde vieram, do contrário,
mato todos vocês! Perpetua, eu sei que você está me ouvindo, então traduza a
minha mensagem para o líder do grupo, agora!”
“O que foi que ele disse?” ‒ pergunta
Dayad.
“Que você se renda e, em troca, ele
deixará as outras partirem de volta à Terra.” ‒ conta a marciana.
Ayizur olha para Dayad e para
Perpetua. Iouria continua caminhando ao redor da sala, sem reação.
‒ O que está acontecendo? ‒ pergunta
Enā’y, da porta, após se esgueirar pelos corredores, ainda bastante debilitada.
Do lado de fora do laboratório ouve-se
o ruidoso maçarico, acoplado ao braço de Gabriel, recortando o pesado portão
metálico, última barreira entre o grupo e a escolta de Simon. Perpetua conduz o
grupo até a Arca, partindo para o painel de controle assim que adentra a imensa
nave espacial.
“Você consegue levá-las de volta para
casa?” ‒ pergunta Dayad, aproximando-se da marciana.
“Sim, a nave tem carga suficiente para
dar a partida, depois disso, contaremos com a energia do Sol... Espere. Você
não vai conosco?”
“Não. Preciso me assegurar de que
vocês partirão em segurança. Ademais, tenho assuntos a tratar com seu irmão.”
“Isso é suicídio, Dayad! Se você
ficar, ele fará coisas terríveis com você!”
“Ao contrário. Eu que farei coisas
terríveis com ele.”
A marciana não tem o que dizer diante
do determinado semblante da terráquea. Ayizur, após acomodar Enā’y e Iouria, se
aproxima, tensa.
“Aquela coisa está quase entrando aqui,
vejam!”
As mulheres veem o portal de Bethesda
prestes a desmoronar, agora sendo atacado brutalmente por Gabriel e os
impacientes guardas humanos.
“Seu tempo está acabando!” ‒ anuncia a
voz de Paul no rádio. “Rendam-se agora ou sofram as consequências!”
Dayad abraça Perpetua e Ayizur, que
não entende nada ao ver sua amiga partir, em silêncio, para fora da nave.
“Você não está pensando em se render,
está, Dayad?!” ‒ inquieta-se a terráquea, vendo-a beijar a testa de Enā’y,
desacordada, e Iouria, que, ainda que esteja de olhos abertos, não reage.
“Não há nada para mim lá na Terra.”
‒ Dayad, não!!! ‒ grita Ayizur, que
tenta ir atrás da companheira, mas é segurada por Perpetua.
“Sinto muito, eu também gostaria que
ela ficasse, mas temos que respeitar a escolha dela.” ‒ lamenta a marciana.
Dayad deixa a nave e olha pela última
vez para suas companheiras, enquanto caminha em direção ao portal. A Arca então
se fecha e começa a flutuar. Quando finalmente Simon e sua escolta conseguem
invadir Bethesda, se deparam com Dayad, sozinha e desarmada, e, ao fundo, a
nave rompendo o topo da abóboda translúcida que protege a base espacial ‒ uma
vez que não havia ninguém na sala de comando para abrir a redoma, como de
costume. O vácuo do espaço exterior começa imediatamente a sugar todo o
oxigênio do local, criando uma violenta corrente de ar que arrasta todas as
pessoas presentes.
‒ Mestre, salve-me! ‒ grita Simon ao
androide Gabriel, controlado à distância pelo reverendo, que tudo vê através
das câmeras.
O androide levanta voo em meio ao
caos, para contentamento do servo que o vê se aproximando. Para sua surpresa,
contudo, Gabriel passa direto e captura Dayad quando esta já está prestes a ser
sugada para o lado de fora ‒ destino, não obstante, encarado pelos guardas
desesperados. Simon, desolado, se entrega à morte certa por asfixia na inóspita
superfície nua do planeta vermelho, quando, para sua surpresa, ele consegue se
prender à borda do orifício. A duras penas, lutando para não escorregar no
sangue de suas próprias mãos feridas pelo vidro estilhaçado, o marciano
consegue esticar o corpo e permanecer dentro da abóboda, desafiando a
gravidade.
De posse de Dayad, Gabriel dá um voo
rasante e deixa Bethesda para trás. Uma vez assegurada a posse de seu troféu de
guerra, Paul aciona o mecanismo de fechamento de emergência da base espacial,
isolando-a do resto da cidade. Simon, que se preparava para caminhar do topo da
abóboda até o chão com o auxílio da gravidade invertida pelo fluxo de ar, agora
se vê no vácuo, sem nada que impeça a queda de aproximadamente 30 metros de
altura rumo à sua morte solitária.
Os primeiros raios de Sol começam a
surgir, iluminando a Arca, que agora ganha o horizonte. Dayad, apesar de tudo,
se alegra ao ver que suas companheiras conseguiram fugir em segurança. Presa
nos braços imóveis do androide, agora no chão, ela começa a suspeitar de que há
algo errado. Seu plano era ser levada até o líder marciano e então se vingar
dele, entre quatro paredes, mas o estranho homem de metal não se move nem a
libera, como se estivesse desativado ou aguardando instruções.
Eis que a escuridão do céu marciano é
cortada por uma estranha e, ao mesmo tempo, familiar coluna de fogo que acerta
a Arca, para desespero de Dayad, que vê a nave desabar de volta à superfície
marciana. Por mais que ela se contorça, é impossível se desvencilhar das firmes
garras do androide, mas o pior é saber que não há nada que ela possa fazer para
salvar suas amigas. Neste momento, Gabriel é reativado e novamente alça voo,
rumo à sinistra cruz de ferro que domina o horizonte.
“Está vendo o que você fez? Você os
matou! Foi você, com sua teimosia que só não é maior por falta de espaço. Você
destruiu Bethesda e a Arca. Você matou Simon, Perpetua e os outros. Agora, você
vai pagar por tudo isso!” ‒ anuncia Paul pelo rádio acoplado a Gabriel, mesmo
sabendo que a prisioneira não entende sua língua.
Desolada, Dayad não se importa. Ela não se
importa mais com nada.
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Índice
Dedicatória / Aviso Capítulo 1: Sono eterno Capítulo 2: O banquete Capítulo 3: Um povo sem nome Capítulo 4: Pr...
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Cai a noite. As ruas se tornam desertas, silenciosas demais até para Dayad, que nunca havia estado ali em outras ocasiões para comparar...
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Tempo médio de leitura: 8 minutos ‒ Ia’d’, Zīk, Dīz, Akinz e Urāū Akonū. Cinco vidas tão jovens que se foram. Cinco crianças que liv...
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Três anos depois, nas profundezas da selva outrora conhecida como amazônica, ou no que restou dela... ‒ Seca. Eu vejo seca. Um s...