“Aquele ponto no céu!? É lá que
estamos?!” ‒ exclama Ayizur, estupefata. ‒ “Mas, como é possível?!”
“Este ponto... Aqui...” ‒ murmura
Perpetua, com receio de parecer petulante ao corrigir a frase da terráquea.
“Não sei o que me deixa mais impressionado.”
‒ começa Iouria, após ouvir o relato da marciana. “O fato de estarmos em Marte
ou saber a história por trás da morte da população de um planeta inteiro.”
“E o que vocês pretendem fazer com
nossas famílias, lá na Terra?!” ‒ revolta-se Enā’y, partindo para cima de
Perpetua.
“Ela não tem nada a ver com isso, eu
já lhe disse!” ‒ intervém Dayad. “Ela é tão vítima disso tudo quanto nós!”
“Desculpem interromper, mas, acho que
esta não é a melhor hora nem lugar para vocês discutirem. Temos que achar as
outras logo e não fazemos a menor ideia de onde elas estejam.”
“Ayizur tem razão. Essa sua amiga por
acaso não sabe onde elas podem estar?” ‒ indaga Iouria.
“Essa minha amiga tem nome, por que
não pergunta diretamente a ela?” ‒ retruca Dayad. “Se bem que... na verdade, eu
nem sei seu nome.”
“Perpetua. Perpetua Christianson.” ‒
responde a marciana, para o espanto das demais ao ouvir seu impronunciável
nome. “Acho que sei onde suas amigas estão, mas tenho duas notícias, uma boa e
outra má. Qual vocês querem ouvir primeiro?”
“Diga a má.” ‒ adianta-se Enā’y, com
ar de suspeita.
A marciana olha para o grupo e sente
um nó na garganta.
“O que foi?” ‒ preocupa-se Dayad.
“Bem... Elas estão no mesmo lugar de
onde vocês vieram, Bethesda, do outro lado da colônia. Não será nada fácil
chegar lá.”
“Nada que nos surpreenda.” ‒ comenta
Iouria.
“E a boa notícia?” ‒ pergunta Ayizur.
“É exatamente lá que se encontra a
nave que pode retornar vocês para casa.”
“Então vamos!”
...
‒ O... O que aconteceu?
‒ Encontrei Vossa Santidade em seus
aposentos, gravemente ferido.
‒ Perpetua fugiu... não foi?
‒ S... Sim.
‒ Mas, você já a capturou.
Sabendo que mentir é inútil, Simon
balança a cabeça, em negação.
Paul se levanta do leito com
dificuldade. O médico, chamado às pressas para atendê-lo, se aproxima rápida e
cautelosamente.
‒ Vossa Santidade, por favor, retorne
a seu leito. Neste momento, é fundamental...
O reverendo ergue o braço em direção
ao médico antes mesmo que este possa concluir a frase, contudo, nada acontece.
‒ ...o descanso. Vossa Santidade
perdeu muito sangue. Se não agíssemos...
‒ Cale a boca! ‒ grita Paul, frustrado
por não dispor do aparelho de choque acoplado a seus braços para eletrocutar aquele
que acaba de salvar sua vida. ‒ Eu dou as ordens por aqui!
O médico se cala, enquanto o reverendo
toca o local afetado pelo golpe de sua irmã, agora repleto de pontos cobertos
por um tecido poroso. Aos poucos sua memória retorna e ele logo se lembra da
terráquea arredia.
‒ Estou aqui, Vossa Santidade. ‒
interfere Simon, percebendo que seu mestre está tentando ativar o módulo de
leitura de pensamento.
‒ Mas, até isso aquela... ‒ resmunga o
reverendo, balançando a cabeça e respirando fundo, ainda sob efeito de
medicamentos. ‒ Reforce... o Inferno.
Simon franje a testa, sem saber o que
dizer.
‒ Ah, não! Só falta você me dizer
que... aquela vagabunda fugiu com os terráqueos e você... não fez nada para
impedi-los!
Simon anui, em silêncio.
Paul, em um acesso de raiva, desfere
lânguidos golpes em direção a seu servo, que sabe que não pode se mover, do
contrário, seu mestre perderá equilíbrio e cairá de seu leito. Frustrado, o
reverendo segura no ombro de Simon e se esforça para falar algo, porém uma
repentina tosse o impede de retomar o fôlego. Finalmente, o patriarca da
colônia balbucia:
‒ Mande Gabriel atrás deles!
Simon morde os próprios lábios,
começando a se arrepender de ter salvado o reverendo, ao invés de ter se
juntado à irmã dele.
‒ Ele sofreu um pequeno acidente,
Vossa Santidade, mas já estamos tratando de colocá-lo de volta em operação.
Os olhos coléricos de Paul acertam o
semblante tristonho do servo como se fossem disparados de canhões a laser.
‒ Os terráqueos o abateram... não foi?
Simon anui.
‒ Maldição!!!
O grito do reverendo é tão alto que
reverbera pela redoma de vidro da colônia, sendo escutado a centenas de metros
dali, por Dayad e seu grupo.
“Más notícias: meu irmão está vivo.” ‒
anuncia Perpetua.
“Impossível!” ‒ assusta-se Dayad.
“Quem é seu irmão?” ‒ pergunta Enā’y,
mais desconfiada do que curiosa.
“Um daqueles homens que derrubamos lá
atrás!” ‒ intervém Dayad.
“Isso significa que teremos
companhia?” ‒ inquieta-se Iouria.
Ayizur ergue a mão, pedindo silêncio.
“Vocês estão ouvindo?”
O grupo apura os ouvidos e, em
instantes, ouve um crescente zumbido. Antes que alguém possa dizer algo, as
luzes se apagam e todo o setor da colônia onde se localiza o grupo fica às
escuras. O zumbido se aproxima cada vez mais e, instintivamente, o grupo tenta
se esconder nas portas e cantos dos edifícios mais próximos. A escuridão logo é
rasgada por disparos a laser vindos do alto, cujos clarões, por breves
instantes, tornam visíveis os contornos do androide Gabriel, cujas asas, antes
silenciosas em voo, agora zumbem ruidosamente, tortas, depois do último embate.
O grupo revida, disparando ao mesmo tempo de várias direções, sem sucesso. Dotado
do último visor noturno e térmico da colônia, o enviado clerical agora se vê
diante de presas fáceis.
‒ Ayizur! ‒ grita Iouria, após ver o
local onde estava sua companheira ser iluminado por um disparo poderoso como um
relâmpago.
Sem resposta, o terráqueo dispara na
direção do androide, mas é alvejado antes mesmo de entender que seu inimigo já
aterrissou.
“Temos que correr!” ‒ clama Perpetua,
que leva um disparo nas costas assim que segue para uma transversal.
Enā’y corre contra o androide,
efetuando contínuos disparos, mas este ativa um escudo eletromagnético e revida
em seguida, atingindo a terráquea na cabeça.
Dayad, em pânico, vê o escudo de luz
que ilumina a sinistra criatura vir em sua direção e sabe que não adianta
atirar nem correr. Ela então se finge de morta, ao que Gabriel diminui seus
passos. Dayad, de olhos fechados, sente uma tênue luz percorrê-la
momentaneamente e, em seguida, ouve um ruído mecânico. Por maior que seja o
risco, ela não resiste ao ímpeto de erguer uma de suas pálpebras e então
observa o adversário mudar a carga de sua arma. Antes que possa se dar conta, um
dardo tranquilizante atinge sua pele e a terráquea imediatamente adormece.
...
Os olhos de Dayad se abrem com
dificuldade. Sua cabeça pesa e ela custa a conseguir focar sua visão, até
finalmente discernir o que parece se tratar de um par de... nádegas. Ela logo
se dá conta de que está em movimento, sendo carregada no ombro de Enā’y.
‒ Parece que ela acordou! ‒ nota
Iouria, aproximando-se para se certificar.
‒ Ah, que bom! ‒ exclama Enā’y,
colocando a amiga de volta ao chão. ‒ O que houve, Dayad, você desmaiou, do
nada!
“Enā’y, você está viva?! Ayizur,
Iouria! Mas... onde está Perpetua?” ‒ gesticula Dayad, surpresa e ao mesmo
tempo preocupada.
‒ Ali na frente, olhe. ‒ aponta
Ayizur.
Perpetua se volta e sorri ao ver que
Dayad acordou, mas, seu sorriso logo se desfaz quando “ouve” as palavras da
terráquea:
“Seu irmão está vivo!”
“Mas... como?!”
‒ Maldição!!!
O grito reverbera pela redoma da
colônia recém tornada metrópole. Um frio desce pela espinha de Dayad, que
esperava ter mais tempo para organizar um contra-ataque.
“Falta muito para chegar ao nosso
destino?” ‒ pergunta Dayad, visivelmente perturbada.
“Estamos na metade do caminho. Por
quê?” ‒ responde Perpetua.
“Corram!!!”
Dayad parte em disparada, seguida por
suas companheiras, mesmo sem saber do que estão correndo. Acostumadas a uma
gravidade muito maior do que a de Marte, as pernas terráqueas avançam com
rapidez monstruosa rumo a Bethesda, visível à distância como uma enorme bolha
adjunta à redoma. Dayad olha para trás, para se certificar de que o grupo está
unido, quando percebe o vulto de Perpetua, à distância, esforçando-se
penosamente para alcançá-la.
“Continuem em frente, não diminuam por
nada! Eu já volto!” ‒ avisa a terráquea, dando meia-volta.
Perpetua, machucada e enfraquecida,
cai de joelhos no chão, aceitando seu destino como parte mais fraca e
vulnerável do grupo do qual ela sequer tinha certeza se integrava. Eis que
diminutos pés parecem pousar diante de seus olhos, tais como os de uma fada
super-poderosa, cujos braços erguem seu grande e surpreendentemente leve corpo.
Por um instante, os narizes das duas moças se tocam e seus olhares se cruzam.
Palavras não são necessárias, mesmo porque, o aparelho de leitura de mentes se
encontra acoplado às têmporas de Enā’y, que já está longe a se perder de vista.
Dayad então toma Perpetua em seus braços e corre atrás do grupo o mais rápido
que pode.
‒ I
love you... ‒ murmura a marciana.
Dayad sorri, imaginando que Perpetua
acabou de agradecê-la em sua língua.
Um zumbido começa a ressoar, tal como
se um besouro gigante se aproximasse. À distância, o trio já se encontra no
portal de Bethesda, sem conseguir acessá-lo, entretanto. As luzes vão se
apagando, tal como se a escuridão almejasse deglutir as duas mulheres. Disparos
de laser cortam o breu e só não acertam Dayad porque ela acelera os passos em
um desvairado ziguezague. Finalmente as duas se juntam ao trio, que dispara
contra o anjo da morte, conseguindo apenas retardar sua ofensiva.
“Você sabe como entrar?” ‒ pergunta
Dayad a Perpetua, apontando para o grande e pesado portão,
A marciana anui e entrega o escudo à
terráquea, prosseguindo então a tatear em busca do sensor de leitura de mão, na
esperança de que este ainda a reconheça e esteja sendo alimentado por uma fonte
alternativa de energia. Uma luz se
acende e a porta se abre, ainda que vagarosamente, para alegria de Perpetua.
Iouria, o mais próximo, corre para dentro, seguido de Ayizur, que se aproxima
de costas enquanto troca tiros com Gabriel. Perpetua, do limiar da porta, dá
cobertura às duas terráqueas restantes, quando um disparo acerta o abdômen de
Enā’y. Dayad agarra a amiga e, protegendo-a como pode com seu escudo, a arrasta
até a porta. Assim que as duas passam, Perpetua entra e tranca o acesso. O
grupo finalmente pode recuperar o fôlego, ainda ouvindo os disparos e golpes
mecânicos atingirem a pesada porta metálica, do outro lado.
“Como você sabia o que ia acontecer?!”
‒ pergunta Ayizur, estupefata. “Você teve uma visão?”
“Sim, Mãe Akonū injetou a infusão em
mim, pouco antes de partir para a caçada.” ‒ explica Dayad, ainda ofegante.
“Mas isso não importa agora, Enā’y precisa de socorro imediato!”
“Eu posso ajudá-la.” ‒ intervém
Perpetua.