Sunday, December 30, 2018

Capítulo 6: Tessalonicenses

Tempo médio de leitura: 8 minutos


‒ Ia’d’, Zīk, Dīz, Akinz e Urāū Akonū. Cinco vidas tão jovens que se foram. Cinco crianças que livremente brincavam em sua terra quando foram brutalmente assassinadas. Mas elas não morreram em vão. Agora sabemos contra quem lutamos. Sabemos como se movem, como são, o que querem. O que é pior do que uma tragédia? Duas tragédias. Acredito que, infelizmente, esta não foi a última tentativa de invasão do povo morto. Temos que nos preparar para que da próxima vez não haja mais vítimas como estas cinco jovens que sepultamos hoje.
Mãe Akonū termina seu pronunciamento e se retira, amparada por suas filhas. As mães das vítimas choram, inconsoláveis. Pouco a pouco a multidão se dispersa, em silêncio, após prestar suas homenagens. Enā’y, contudo, não se move. De pé, punhos cerrados, ela derrama lágrimas sobre uma das covas:
‒ A culpa foi minha. Eu deveria ter sido mais ágil, ter chegado antes e impedido essa matança!
“Você fez o possível.” ‒ alenta Dayad. “Você nos preparou muito bem, nos juntou e partiu assim que viu a coluna. Tivemos que atravessar rios, cachoeiras, subir e descer colinas pela mata fechada para enfim encontrarmos nosso alvo. Você não poderia ter previsto isso, nem Mãe Akonū pôde.”
Enā’y abraça a amiga.
‒ Preciso de um momento sozinha, tudo bem?
Dayad concorda e vai ao encontro de Ioṣū, que assistia à cena logo adiante. 
‒ Acho que ela está se cobrando demais. Ninguém aqui estava pronta para o que encontraríamos. As coisas poderiam ter sido muito piores.
“Ela já se culpava por não ter conseguido impedir a morte de seu companheiro, agora isso... É triste, muito triste.”
‒ Todas nós vamos morrer um dia, Dayad, é a vida. Venha, vamos ao rio ver o que sobrou do avião. Talvez possamos aprender mais sobre a tecnologia desses invasores e assim nos prepararmos para seu retorno. Nurz falou que os viu de perto, que eram pálidos feito filhote de urubu, pareciam nunca terem visto o sol!
“Que horror!”

...

‒ O povo já sabe?
‒ Não, Vossa Santidade.
‒ Bom.
Silêncio.
‒ Lamentamos por Sua perda.
‒ Ah, sim. Um deles era meu filho, não era?
‒ Sim, Gregory, o mais novo.
‒ Hmm...
Silêncio.
‒ O que nós faremos agora?
Os sombrios olhos cinzentos do reverendo, que pareciam mirar nada mais que o vazio, se voltam para o comandante.
‒ O que nós faremos agora? Não existe mais nós, Nathan. Eu vou dizer o que eu vou fazer!
O reverendo ergue suas mãos em direção ao comandante, cujo corpo começa a tremer enquanto seus olhos viram e suas veias se dilatam.
‒ Isso tudo é culpa sua! Sua!!! Como você pôde deixar aqueles selvagens estúpidos destruírem a Gênesis?! Você deveria ter detectado sinais de vida humana na Terra antes do lançamento, mas não! Enviou a nave para destruição certa nas mãos desses demônios, sem que sequer saibamos quantos são, onde vivem e que armas têm! Sabe o quanto nos custou para construir aquela nave que você destruiu?!
As funções vitais de Nathanael são parcamente suficientes para que escute e processe as palavras do reverendo, sem condições de responder. Finalmente, depois de alguns segundos, seu corpo cai ao chão, inerte.



‒ Levem-no para a cozinha! ‒ ordena Christianson a seus guardas. ‒ E deixem o lombo para mim!
Os homens tentam carregar o cadáver para fora da sala, mas levam choques ao tocá-lo. Com ajuda de seus cassetetes de vidro vulcânico, eles arrastam o pesado corpo, orando mentalmente para que a cena não deixe o reverendo ainda mais irritado.
“Simon!”
“Sim, Vossa Santidade?”
“Conclame a população. Dentro de uma hora teremos missa.”
“Certamente, Vossa Santidade.”
Uma pequena multidão começa a se formar diante da catedral ‒ um edifício construído em meados do século XXII para produzir os primeiros satélites e veículos espaciais marcianos, posteriormente requalificado por ordens do reverendo Paul Christianson V assim que foi inaugurada a expansão que ele batizou como Bethesda, onde Gênesis foi construída. Simon abre as portas do templo, dentro do qual a população se acomoda em silêncio. Assim que o reverendo Paul Christianson VI adentra o recinto, todas as pessoas se levantam, com temor em seus semblantes.
‒ Meus filhos. “Tudo tem o seu tempo determinado e há tempo para todo propósito sob o céu. Há tempo de nascer e tempo de morrer. Tempo de plantar e tempo de colher. Tempo de matar e tempo de curar. Tempo de derrubar e tempo de edificar. Tempo de chorar e tempo de rir. Tempo de prantear e tempo de dançar.” Hoje é tempo de chorar pelos nossos filhos que morreram na Terra, verdadeiros mártires que padeceram nas mãos dos demônios que tomaram conta do planeta dos nossos pais fundadores.
A plateia arregala os olhos diante da notícia duplamente bombástica.
‒ “Tamanha a perdição humana e seus vícios que Deus todo poderoso, com sua sabedoria e compaixão infinitas, decidiu fazer da Terra purgatório, enquanto Seus filhos puros e honrados foram levados ao Planeta Vermelho. Ele incumbiu a linhagem de Seu filho mais capaz, justo e santo, de guiar e de educar seu povo de acordo com as sagradas escrituras, para um dia poder retornar à Terra Prometida; Quem se opor a Ele ou às escrituras, servirá de argamassa para Sua obra.” Alguém sabe me dizer que passagem é esta da Bíblia?
Várias mãos se levantam na plateia. O reverendo escolhe um jovem, próximo a ele, que se levanta e orgulhosamente diz:
‒ Marte 2:17,18!
‒ Exatamente! Contemplem a grandiosidade e o mistério do plano que Deus fez para nós! Milênios atrás, nossos ancestrais arianos na Escandinávia do Sul encontraram e leram essas mesmas palavras, às margens do Mar Morto. Tudo, meus filhos, já estava escrito! A compaixão de Deus é tamanha, que após o Juízo Final, ao invés de entregar as almas de seus filhos perdidos a Satanás, Ele preferiu dar-lhes uma segunda chance, fazendo da Terra seu purgatório. A chegada de nossos rapazes foi um teste divino, uma nova oportunidade que Deus lhes deu para se redimirem, e eles, mais uma vez, perderam, o que só mostra que não são dignos de piedade e que o Senhor nos escolheu para sermos Sua Justiça Divina, encarregando-nos, pois, de extingui-los de uma vez por todas. O destino desses pecadores é se tornarem argamassa para nossa obra edificante, pois esta é a lei divina ‒ a lei do mais forte! Assim como o destino do pecador que nasce com deficiência, do pecador que dorme com pessoa do mesmo sexo, do pecador demasiadamente velho que se torna um estorvo para aqueles ao seu redor e do pecador que ousa duvidar das escrituras é servir de alimento para nós, mais fortes e dignos, esses demônios hão de virar carne nas nossas mesas, adubo para nossa colheita e seus ossos serão os alicerces das nossas casas, assim na Terra como em Marte!
A plateia, emocionada, se levanta para aplaudir efusivamente a fala do reverendo. Enquanto este aguarda a longa salva de palmas se esgotar para dar continuidade, seus olhos se fixam em uma menina da plateia, acompanhada de seus pais. Tomado de súbita ansiedade, ele retoma o sermão:
‒ Não é fácil ser o líder da humanidade, sucessor de uma linhagem escolhida diretamente por Deus para uma tarefa tão dura, mas, essa dureza sempre leva aos maiores prazeres. Sim, meus filhos, diante desta situação é necessário ter um posicionamento rijo, impávido, se quisermos penetrar as úmidas matas abaixo da linha do equador, nossas por direito... As matas virgens estão nos esperando para serem desbravadas, conquistadas, exploradas, para que possamos, enfim, gozar de suas riquezas, de seus encantos e... “Simon!”
“Pois não, Vossa Santidade?”
“Está vendo aquela garota ali, na terceira fileira, junto com os pais?”
Simon, que está a poucos metros de distância, olha para a dita fileira e em seguida para seu mestre, que balança levemente a cabeça em sinal negativo, ao que o servo torna a esquadrinhar a plateia até encontrar a tal jovem, desta vez, obtendo confirmação do reverendo.
“Leve-a para meus aposentos.”
O servo anui e parte, enquanto o reverendo avança para o fim da cerimônia:
‒ Então não temam, meus filhos. Essa Noite Triste não foi em vão. Gênesis era só o início. Agora sabemos que a Terra está livre da praga do sono, seu clima está estabilizado e ela se encontra plena de recursos à nossa espera. A Arca já está quase pronta e ela partirá sob a proteção do Arcanjo. Eu lhes dou a minha palavra: antes mesmo do bicentenário da nossa colônia haveremos de comemorar a conquista da Terra!
‒ Aleluia! ‒ grita a plateia, em meio a lágrimas e aplausos.
‒ Agora, meus filhos, vão em paz e que o Senhor os acompanhe.
Simon se apressa em direção à saída, interceptando a garota.
‒ Sua Santidade deseja vê-la.
A tímida garota, que não deve ter mais do que 12 anos de idade, custa a entender o que se passa.
‒ Oh, o Reverendo quer ver a nossa menininha? Oh, glória! ‒ louva a mãe, tão sorridente quanto o pai.
‒ O que ele quer comigo? ‒ pergunta a menina.
‒ Ele quer conhecê-la. ‒ sorri Simon.
‒ Minha filha, você foi escolhida! ‒ felicita a mãe. ‒ Você tem muita sorte, sabia? Quando eu tinha a sua idade, eu também fui iniciada pelo Reverendo. É um privilégio conhecer um homem santo, com tantos poderes...
A criança sequer tem tempo de pensar quando sua mão é agarrada por Simon, que a leva para o cômodo de Christianson.
O pai e a mãe da garota observam e acenam, felizes, enquanto a filha se distancia, com olhos lacrimejantes, sem entender o que se passa.
‒ Eu já lhe contei que acho que sou filho do Reverendo? ‒ comenta o pai.
‒ Muitas vezes, meu amor! Eu me lembro que foi isso que me atraiu em você, logo quando nos conhecemos. ‒ relembra a mãe, alisando o rosto do marido, cujos traços, de fato, lembram o rosto do líder.

Sunday, December 23, 2018

Capítulo 5: A noite triste

Tempo médio de leitura: 9 minutos


Um mês depois.
‒ Droga! São muito mais do que pensávamos! ‒ exclama Ioṣū, correndo desesperadamente. ‒ Ṣōd, você ainda tem munição?
‒ Só restaram duas balas! ‒ confere o jovem, ofegante.
‒ Então atire neles! ‒ brada outra jovem, logo ao lado.
‒ Você ficou louca, Nadua?! Foi justamente o disparo que chamou a atenção do grupo! Se eu atirar de novo, só vai piorar!
“Eu tenho uma ideia, dê a arma para mim.” ‒ gesticula Dayad.
Ṣōd entrega seu rifle a Dayad, que diminui o ritmo, ficando atrás do grupo. De repente, ela para e se volta para uma frondosa árvore, cujo galho mais alto é dominado por uma imensa bromélia. Ela então atira na parte mais afinada do galho, fazendo-o tremer.
‒ Não adianta atirar para cima, Dayad! ‒ exclama Nadua, atônita.
Dayad atira mais uma vez, fazendo o já deteriorado galho desabar com o peso da enorme herbácea, justamente no momento em que a numerosa manada de queixadas passava por baixo, a poucos metros da jovem. Apavorados pelo estrondo, os porcos selvagens fogem, enquanto três deles se estrebucham debaixo da pesada tora de madeira.
‒ Genial! Dayad, você é o máximo! ‒ exclama Ioṣū, abraçando sua companheira.
‒ Nós devemos nossas vidas a você! ‒ reconhece Ṣōd, recuperando o fôlego.
‒ E um belo churrasco hoje à noite! ‒ sorri Nadua, que mal pode esperar para levar os três tenros porcos para casa.
Nadua adentra a vila, logo à frente de Ṣōd, imaginando as caras de espanto e admiração quando as outras virem quanta carne ela e suas companheiras trazem enfileiradas nas varas que apoiam em seus ombros. Os semblantes que ela encontra coincidem com suas expectativas, contudo, os olhares se fixam em outra direção.
‒ O que vocês estão olhando? ‒ estranha Nadua, à medida que se aproxima da clareira, ainda rodeada pela imponente mata.
As pessoas apontam para o céu e comentam entre si, impressionadas. O grupo deixa as queixadas para trás e se apressa para o meio da praça central, de onde veem nitidamente o motivo de tanto espanto.
‒ Será que aquilo é... ‒ balbucia Ṣōd.
‒ A visão da matriarca, sim, só pode. ‒ completa Nadua, boquiaberta.
A coluna de fumaça se alastra como um enorme e profundo corte perpendicular no céu, vindo de algum ponto inimaginavelmente distante. A essa altura, a fumaça já começa a se dissipar, quando, de repente, um bando de pássaros voa na direção do vilarejo, fugindo da ameaça desconhecida.
‒ Eu sabia que isso aconteceria mais cedo ou mais tarde, mas não imaginava que a tal coluna fosse cair tão longe. ‒ comenta Ioṣū, calculando mentalmente a distância e a dificuldade de se chegar à zona de impacto.
‒ O que vocês estão fazendo aí paradas? Vamos, apressem-se! ‒ brada Enā’y, com um fuzil em punho.

...

‒ Vírus: 0%. Radiação: 0%. Possíveis agentes de contaminação: 0%. Bem, amigos, os sensores nos indicam que já podemos tirar nossos capacetes.
‒ *Coff*! *Coff*! ‒ tossem os astronautas ao respirarem, pela primeira vez em suas vidas, fora de um ambiente pressurizado.
‒ Quanta... *coff* umidade! E como é quente aqui! Nunca senti tantos odores ao mesmo tempo na minha vida!
‒ Vai ver é por isso que nossos ancestrais viviam longe dos trópicos. É como se estivéssemos com febre o tempo todo! Ah, temos que passar o protetor solar, ele deve nos proteger dos insetos também.
‒ Espero que as vacinas que tomamos ainda sejam capazes de nos proteger das tais doenças tropicais. Faz quase duzentos anos que os pais fundadores as levaram para Marte, de lá para cá elas podem ter evoluído.
‒ Parem de reclamar, vocês sabem que pousamos na região equatorial porque assim teremos economia de combustível para facilitar nosso retorno. Agora vamos, me ajudem a ativar Sansão e enviar dados para a base em Marte. ‒ diz um dos astronautas, ativando um ícone de realidade aumentada que só ele e seus companheiros enxergam a partir de suas lentes de contato. Um compartimento da nave espacial se abre e de dentro sai um veículo flutuante e arredondado como um casulo metálico.


‒ Sansão, iniciar comunicação com a base.
A parte superior do veículo se abre, revelando um conjunto de câmeras que registram todo o ambiente ao redor. Daí se projeta um holograma, revelando um grupo de pessoas em uma sala de comando.
‒ Base, confirme recepção de sinal. Paz de Cristo. ‒ solicita um dos astronautas.
Cerca de três minutos depois, os tensos semblantes da base marciana mudam para contidos sorrisos.
‒ Recebido. ‒ responde o comandante. ‒ Bom trabalho, rapazes. Relatem status da missão e iniciem envio de dados sobre o planeta imediatamente. Paz de Cristo.
‒ Entendido. Status da missão: OK. Sansão, iniciar análise de terreno e envio de dados. 
O veículo se eleva e começa a esquadrinhar a floresta, recolhendo informações sobre fauna, flora e recursos a serem explorados. De repente um alarme soa, chamando a atenção dos astronautas.
‒ Parece que a sonda pegou alguma movimentação suspeita. ‒ comenta um dos astronautas, acessando as imagens. ‒ Deixe-me alternar para visão térmica...
‒ Esses sinais são de... pessoas?! ‒ espanta-se outro.
‒ Deixe de tolice. Devem ser macacos.
‒ Vou aproximar a câmera para captar imagens mais detalhadas.
A sonda submerge sob a copa das árvores, registrando, com nitidez, corpos humanos que se escondem, assustados, atrás das moitas. 
‒ Droga! Então ainda há sobreviventes! Sansão, iniciar protocolo 88/T4!
A sonda começa a efetuar disparos a laser contra os alvos que inutilmente tentam se esconder ou fugir. Uma a uma as pessoas são alvejadas, assim como previsto no referido protocolo referente ao caso extremamente pouco provável de encontro com sobreviventes, possíveis portadores do vírus do sono eterno.
‒ Hahaha! Vejam os macacos tentando fugir, é hilário! Pew-Pew! ‒ gargalha um dos astronautas, acompanhando a matança pelas lentes de contato e imitando o som dos disparos a laser.
‒ Oh... Parece que já acabou. ‒ conclui outro, desanimado. ‒ Eram só cinco.
‒ Sansão, analise o sangue dos alvos neutralizados. ‒ comanda outro astronauta, menos entusiasmado.
‒ Você acha que eles podem ter o vírus?
‒ É o que vamos ver agora.
Dentro de alguns minutos, a sonda envia dados detalhados sobre os corpos das vítimas, incluindo imagens em altíssima resolução, informações sobre sangue, código genético, peso, altura e idade.
‒ Não tenho certeza, mas parecem humanos. ‒ conclui um astronauta, diante do resultado das análises. ‒ Pelo visto, o vírus não conseguiu chegar até as profundezas da selva amazônica. Estão livres de doenças. Paz de Cristo.
‒ Negativo. ‒ responde o comandante da base, alguns minutos depois. ‒ O código genético desses espécimes que vocês neutralizaram não bate com nosso banco de dados. Parece que essa gente era desconhecida pela ciência até hoje, logo, o vírus não a afetou, uma vez que ele era projetado para acabar com todos os tipos de seres humanos conhecidos até então. Parabéns, vocês parecem ter exterminado a última tribo isolada do mundo. Paz de Cristo.
‒ Trataremos de nos certificar disso. Paz de Cristo. ‒ conclui o astronauta.
A noite cai e os marcianos se recolhem ao interior da nave para jantar.
‒ Vejam que fruta engraçada eu achei. O escâner diz que isso se chama “paullinia cupana”. ‒ mostra um dos astronautas.
‒ Bizarro. Parece um olho. ‒ afasta-se um colega. ‒ Tudo nesse planeta é asqueroso. Não vejo a hora de voltar para casa.
‒ Deus nos escolheu para sermos os primeiros humanos nascidos em Marte a retornar à Terra Prometida e você ainda reclama?! Imaginem como foi difícil para nossos pais fundadores se acostumarem a um novo planeta. Vocês pensam que eles reclamaram? Não, eles trabalharam duro, guiados por Nosso Senhor Jesus Cristo, para que depois de incontáveis problemas, conflitos e tentativas malsucedidas, 198 anos depois viéssemos a realizar seu sonho de voltar e retomar o que é nosso.
‒ Tem razão, desculpem. O Reverendo Christianson conta conosco. Imaginem como nossos irmãos estão orando por nós agora mesmo...
A conversa é interrompida pelo alarme de Sansão. O trio acessa as filmagens de visão noturna e se depara com um grupo muito maior de pessoas, inclusive a cavalo, se aproximando rapidamente.
‒ Sansão, iniciar protocolo 88/T4! ‒ ordena um astronauta.
A sonda começa a atirar em direção aos intrusos, ao que o grupo se dispersa. Os disparos provocam um incêndio na mata, inutilizando tanto a visão noturna quanto a visão térmica da sonda.
‒ Mas que droga! Eu queria ver de novo esses macacos fritarem! ‒ irrita-se um dos astronautas.
‒ Peguem suas armas. Estejam prontos para caso essas feras nos alcancem.
‒ Sério, você acha que Sansão não vai dar conta deles? Mesmo que consigam avançar, eles vão fazer o quê? Atirar pedras na nossa nave?
Nesse momento, a transmissão da sonda é perdida.
‒ O que houve??
‒ Não sei, parece que alguma coisa derrubou Sansão.
‒ Impossível!
O trio corre para a janela mais alta da nave a fim de ver o que se passa do lado de fora, deparando-se apenas com as trevas da floresta interrompidas pelas labaredas do crescente incêndio. De repente, algo acerta a fuselagem.
‒ O que foi isso?
Silêncio.
‒ Gênesis, o que houve com Sansão? Paz de Cristo.
O trio quase pula de susto ao ouvir a voz do comandante através do computador de bordo.
‒ Passamos por uns problemas técnicos. *sons de tiros na fuselagem* Averiguaremos o que aconteceu com a sonda assim que amanhecer! Paz de Cristo.
‒ Droga, o que será isso? ‒ preocupa-se o astronauta, desligando o microfone, ao que se ouvem mais tiros atingindo a nave. ‒ Será que eles viram o que aconteceu?
‒ Com certeza! E ainda ouviram esses ruídos!
‒ Venham ver isso! ‒ espanta-se um colega, olhando pela janela.
Os outros se aproximam e se deparam com vultos armados, iluminados pelas labaredas que se alastram como uma visão infernal cada vez mais próxima. Subitamente, um dos vultos pula para frente da janela, para espanto da tripulação que quase cai para trás. Seus gritos são inaudíveis, por causa do isolamento acústico da nave, mas seu semblante revela uma fúria pavorosa.
‒ Demônios! São demônios! ‒ grita um dos astronautas, em pânico. ‒ O vírus foi o julgamento final, nossos pais foram para o céu e o Inferno se instaurou na Terra!
‒ Acalme-se! Nossa nave é feita para suportar muito mais do que esses pobres diabos podem fazer para nos ferir. Eles são inofensivos!
O alarme da nave soa e uma mensagem de alerta vermelho aparece nos monitores indicando rompimento em um ponto da fuselagem.
‒ Droga! Agora não conseguiremos voltar para casa! ‒ chora um astronauta.
‒ Mas, como? Não pode ser! A fuselagem deveria ser impenetrável!
‒ Vejam o tamanho daquela coisa! ‒ aponta outro astronauta para uma bateria antiaérea do lado de fora.
‒ Gênesis, vocês estão em apuros! Retirem-se daí agora mesmo! Dirijam-se para algum lugar seguro, onde possam reparar os danos da nave e retornar para a base o quanto antes! Paz de Cristo.
A tripulação segue as ordens, levantando voo logo em seguida. Contudo, os disparos de bateria antiaérea continuam, acertando os retropropulsores, o que faz com que a nave se desestabilize e caia no leito do rio.
‒ Vocês estão bem?! ‒ pergunta um astronauta a seus colegas.
‒ Sim, eu acho... Temos um problema! ‒ aponta o colega em direção ao equipamento que começou a pegar fogo ao mesmo tempo em que a água avança por dentro da nave através de uma brecha provocada pela colisão.
‒ Temos que sair daqui! ‒ exclama outro astronauta, desesperado.
‒ Para morrer nas mãos daqueles demônios?!
‒ Deus irá nos proteger!
Os três homens, com dificuldade, saem da nave com as mãos para cima.
‒ Nós estamos desarmados! Pelo amor de Deus, não atirem! ‒ grita um deles, como se seu idioma fizesse algum sentido nestas terras.
Antes que pudessem dizer mais alguma coisa, seus corpos são crivados pelas balas do pelotão de fuzilamento, ao que seus corpos caem, ainda vivos, para serem comidos pelas piranhas.

Índice

Dedicatória / Aviso Capítulo 1: Sono eterno     Capítulo 2: O banquete     Capítulo 3: Um povo sem nome     Capítulo 4: Pr...