Sunday, November 25, 2018

Capítulo 1: Sono eterno




‒ Eu diria “bom dia” a vocês, mas a verdade é que depois de escutar o que eu tenho a dizer, receio que não haverá mais nada de bom no dia de hoje. Entretanto, considerando que não trago novidades e sim soluções, talvez a hora seja mais propícia ao otimismo que ao pessimismo. Como vocês já sabem, mesmo aqueles que até pouco tempo atrás insistiam em duvidar, o aquecimento global é uma realidade e seus efeitos são cada vez mais devastadores. Países inteiros do Pacífico e do Índico praticamente desapareceram, enquanto cidades costeiras por todo o planeta já estão embaixo d’água, devido ao degelo das calotas polares e aumento dos níveis dos oceanos. A cada dia, mais e mais milhões de pessoas estão perdendo seus lares e buscando refúgio nas cidades interioranas, o que está causando caos nos grandes centros urbanos, os quais carecem de recursos para sustentar esse brusco aumento populacional. Somam-se a isso desastres naturais cada vez mais mortais e corriqueiros: furacões, enchentes, secas, incêndios, nevascas fora de época... A média da temperatura global vem quebrando recordes nos últimos anos e o desequilíbrio climático vem causando inúmeros problemas por todo o mundo. Isto, claro, é apenas uma pequena parcela dos nossos problemas...
‒ Sim, doutor, o clima está louco, há poluição por todas as partes, os combustíveis fósseis estão praticamente exauridos, fome, epidemias e guerras estão causando caos pela Ásia, África e América Latina, vivemos a maior crise de refugiados da história da humanidade e a explosão demográfica nessas regiões só indica que tudo vai ficar pior, isso sem falar do terrorismo. Então, vá direto ao assunto e conte-nos como sairemos dessa enrascada.
‒ Tem razão, general. Bem, o que eu quero dizer é que, pelos meus cálculos... Se nada for feito agora, metade da população mundial sucumbirá até o fim deste século.
‒ A metade mais pobre, mais descartável, é claro. Meus caros, estamos diante de uma oportunidade maravilhosa, vocês não veem? Assistiremos a todo esse espetáculo no conforto de nossas mansões e, assim que a situação se estabilizar, lucraremos como nunca reconstruindo o mundo ao nosso bel prazer. Deus está nos fazendo um enorme favor, purgando o planeta de toda essa raça de miseráveis inúteis...
‒ Desculpe-me interrompê-lo, senhor primeiro-ministro, mas as consequências de todas essas variáveis são imprevisíveis. Não sabemos que metade sucumbirá, que metade sobreviverá. Se tem uma coisa que a história nos mostra é que não são necessariamente os mais ricos e inteligentes que sobrevivem e sim os que se adaptam mais rapidamente e os que têm mais sorte. Ademais, duvido que os muros de sua mansão possam deter o avanço dos vírus do permafrost ou das mutações cada vez mais violentas de gripe aviária e suína. O senhor mesmo viu que fim teve seu colega francês no mês passado, alvo de atentado terrorista de autoria até agora desconhecida ‒ e não, não me venha com aquela ladainha que vocês contaram à imprensa de que foram os árabes. O senhor sabe que o povo está cada vez mais revoltado com sua inércia, e a realidade britânica não está nem um pouco distante da realidade dos países representados pelas demais autoridades aqui presentes.
‒ E o que o senhor entende de política?! Vocês estão vendo isso?? É para isso que estamos financiando sua pesquisa, Dr. Walker, para ouvir provocações desmedidas?!
‒ Calma, Thomas, você sabe que ele tem razão, de outro modo, para quê então estaríamos financiando este maldito projeto? Por favor, Dr. Walker, como pedi anteriormente, vá direto ao assunto. Entretenha-nos.
‒ Certo. Diante de tais projeções, decidimos concentrar nossos esforços em apenas uma das vertentes da nossa pesquisa, a solução mais drástica, rápida e eficaz de todas. Nós sintetizamos em laboratório um vírus 100% letal e altamente contagioso, capaz de matar em questão de minutos literalmente toda e qualquer pessoa da maneira mais humana que pudemos conceber: fazendo-a cair no sono. Um sono eterno. Uma vez liberado na atmosfera, não há volta: não existe antídoto. Dentro de seis, no máximo sete meses não haverá sequer um ser humano vivo na face da Terra.
O primeiro-ministro começa a bater palmas.
‒ Bravo! Genial! Simplesmente maravilhoso! Como é que eu não havia pensado nisso antes? Se não podemos acabar com os nossos problemas, acabemos com todo o mundo! Hahaha! ‒ desata a rir o político, que bruscamente muda de semblante e avança rumo ao pescoço do cientista para estrangulá-lo. ‒ Se vamos todos morrer, que você seja o primeiro, seu imbecil!!!
O general parte imediatamente para apartar os dois homens.
‒ Não seja estúpido, Thomas, é claro que ninguém aqui vai morrer! Você e Walker tiveram a mesma ideia, só que ele é mais inteligente. Enquanto você pretende assistir ao fim do mundo na sua mansão em Worcestershire, nós pretendemos comemorá-lo em Marte!
‒ Ma... Marte? ‒ balbucia o primeiro-ministro. ‒ Ah, a colônia! É verdade, eu havia me esquecido... Perdão, rapazes, me exaltei um pouco.
Enquanto o político retorna a seu assento, o cientista se refaz do susto e continua a explicar o plano:
‒ Já cuidamos de tudo: a NASA está provendo a colônia com tudo o que ela precisa para se tornar autônoma. Dentro de três a quatro anos já teremos todos os módulos prontos e um seleto grupo de pessoas ‒ incluindo vocês e seus familiares mais próximos, além de pessoas das mais variadas etnias do mundo inteiro ‒ na colônia marciana. Então, partiremos para a fase de reinicialização da humanidade. Com o vírus do sono eterno, a população da Terra será completamente neutralizada e, dentro de dez anos, período mais do que suficiente para que o vírus, desprovido de hospedeiros, se dissipe e o clima se estabilize, retornaremos ao nosso lar para recomeçarmos a história deixando os erros no passado. É uma decisão terrível, eu sei, mas é pelo bem do planeta e da raça humana.
‒ Sim, a humanidade terá uma segunda chance. Nós mudaremos a história. Criaremos uma nova civilização, próspera, poderosa, perfeita... Contudo, Dr. Walker, seu plano tem uma falha. Uma falha que pode por tudo isso a perder.
‒ E que falha seria essa, General Christianson? ‒ estranha o cientista.
‒ O envolvimento de “pessoas das mais variadas etnias do mundo inteiro.” ‒ aponta o militar, rispidamente. ‒ Você não entende? Estamos diante de uma oportunidade única, tal como quando nossos ancestrais aportaram na América, em busca de um lugar para erguer um grande país, só que, dessa vez, a nível global e sem índios para importunarem a nós, cidadãos de bem! Se acolhermos pessoas não-brancas, não-cristãs, estaremos automaticamente pondo tudo a perder. Esses tipos humanos só trarão seus vícios e vitimismos históricos consigo, esperando a primeira oportunidade para nos apunhalarem pelas costas. É justamente por causa dessa gentalha que estamos tomando essa iniciativa tão drástica. Não é à toa que convoquei apenas representantes de nações tradicionalmente brancas e cristãs para este encontro. Nós somos o pináculo da evolução humana. Cabe a nós decidirmos o futuro da humanidade. Cabe a nós sermos o futuro da humanidade.
‒ Mas... e os outros povos, da África, Ásia-Pacífico e América Latina e seus descendentes, que tanto se empenharam para estabelecer a colônia em Marte? E as mentes brilhantes oriundas dessas regiões, que tanto nos ajudaram...? O que será delas? ‒ murmura o cientista, em choque.
‒ Ora, Dr. Walker, não seja ingênuo. O que são algumas centenas de pessoas perto das bilhões de outras que você mesmo irá matar? ‒ ri o primeiro-ministro. ‒ Isto não é uma propaganda de loja de roupas, onde temos que incluir uns pretos e uns japas para não nos acusarem de racismo. Que se dane o politicamente correto! Há muito nos tornamos minoria étnica na nossa própria terra. Temos que dividir espaço com indivíduos que até um ou dois séculos atrás nem eram gente. Enquanto nossa taxa de natalidade é negativa, eles se proliferam feito ratos de esgoto. Se continuarmos assim, logo, logo a raça branca será extinta! É esse o futuro que você quer para seus descendentes?
‒ Bem... É... ‒ balbucia o cientista.
‒ E o que dizer sobre os EUA, onde nos tornamos escravos dos chineses, somos minoria étnica num território comandado por gangues de negros e latinos? Por Deus, nosso presidente até bem pouco tempo atrás era filho de imigrantes ilegais mexicanos! Se nós não interviéssemos, aquele maldito chicano iria devolver ao México metade do nosso país! Quando eu reativei a patente de General do Exército dos Estados Unidos da América me perguntaram contra quem estávamos guerreando e a verdade, meus caros, é que estamos guerreando pela nossa sobrevivência, na nossa própria casa! Acredito que posso falar em nome de todos aqui presentes que não é esse o futuro que queremos para nossos filhos.
Todos aquiescem, diante de um abatido Dr. Walker. Atormentado constantemente pela ideia de ser o maior carrasco da história, ele já havia se acostumado a pensar em meramente “encolher” a população a níveis sustentáveis, guardando pessoas “das mais diversas e exóticas” na colônia para recriar, até onde possível, a diversidade humana pré-vírus, uma vez de volta à Terra. Agora ele entende o verdadeiro objetivo daqueles que financiavam sua pesquisa.
“De dar inveja a Hitler...” ‒ reflete o cientista, desolado. “Pensando bem, o melhor para o planeta é que a raça humana acabe completamente e de uma vez por todas.”

...

‒ Últimas notícias. O ônibus espacial Victory, que estava programado para levar mais pesquisadores e suprimentos para a colônia Marte I na semana que vem, foi lançado repentinamente hoje por volta das 7:00 da manhã, horário do Leste. Não se sabe ao certo o motivo... da antecipação, assim como a identidade da tripulação ainda não foi divulgada. Com este lançamento, estima-se que a população humana no Planeta Vermelho já chegue a cerca de cem indivíduos... ‒ informa a âncora de um famoso telejornal dos EUA, respirando fundo e olhando brevemente para os holofotes, passando, em seguida, para outra câmera. ‒ Continuam as buscas pelo cientista Edgard Alexander Walker, visto pela última vez ontem à noite, nas imediações do laboratório onde trabalhava no subúrbio de Baltimore... As autoridades descartaram quaisquer relações entre o repentino fechamento do laboratório e a quarentena num raio de 10 quilômetros ao seu redor e o alerta vermelho para possíveis epidemias... nos últimos dias. Pedimos a toda população civil da região da... Nova Inglaterra... que... permaneça... em suas casas...
A repórter luta contra o sono, em vão. Seu destino é o mesmo dos cerca de dez bilhões de seres humanos restantes na Terra. Ao longo dos próximos meses eles adormecem... para nunca mais acordarem.

Dedicatória / Aviso

Às pessoas que pereceram lutando contra o colonialismo,
bem como às pessoas que continuam a enfrentá-lo ‒
verdadeiros baluartes da resistência humana.

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Não recomendável para menores de 16 anos.

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Qualquer semelhança com pessoas e fatos reais é mera coincidência.

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Dedicatória / Aviso Capítulo 1: Sono eterno     Capítulo 2: O banquete     Capítulo 3: Um povo sem nome     Capítulo 4: Pr...